A perda de uma chance na advocacia

Você olha de soslaio uma moça de seu interesse, à espera de consentimento silencioso para se tomar de coragem e declarar seu amor: alguma mínima evidência de retribuição, sutil que seja, que reduza a probabilidade de amargar um fracasso. Tudo são dúvidas, as certezas são meras especulações mentais, baseadas sempre na interpretação de sinais conscientes ou inconscientes que sua amada deixe escapar. Se lhe retribuir o olhar, poderá não ser com o mesmo objetivo. Mas e se sorri também, pode ser por educação ou por falta de outra reação instintiva. Se você não arriscar, nunca saberá.
Isto é mais ou menos o que se passa quando as probabilidades, sejam elas quais forem, não são colocadas à prova.
Na advocacia há algo também de sedução. É profissão destinada ao convencimento alheio das razões de seu cliente ou de sua causa. Nesse processo de persuasão, a “sedução”, ainda que pelos fatos e pela lógica, sempre poderá ser executada de mais de uma maneira, ou em mais de um momento ou circunstância. Dentre as muitas opções, de fazer ou de não fazer, de fazer agora ou mais adiante, ou de fazem assim ou assado, todas trarão consigo, antes da execução, probabilidades mais ou menos imponderáveis. Nas situações típicas ou já várias vezes julgadas pelos Tribunais, o grau de insegurança jurídica é menor. Nas situações atípicas, tateia-se no escuro ou à meia luz.
O maior medo do advogado – como de um médico, um engenheiro, um profissional intelectual qualquer – é cometer erro que prejudique efetivamente ou frustre a expectativa do constituinte. A questão é que isto pode acontecer, e acontece. A pergunta que fica na mente de quem errou e também de quem foi vitimado pelo erro é a mesma: a ação ou omissão equivocada foi a causa do resultado danoso? Total ou parcialmente, isto é, se contribuiu para o insucesso, foi decisiva ou relativa, uma causa ou uma concausa?
Cada caso é um caso, como se costuma dizer. Há causas típicas, nas quais já se pode antever com mínima margem de erro, o desfecho que terá, mesmo antes, ou durante o início da batalha judicial. A despeito de um certo romantismo da profissão, principalmente entre os da velha guarda, negar que existam “causas perdidas”, a experiência mostra que há situações nas quais o advogado pode notar claramente a desvantagem jurídica em que o cliente se encontra diante de seu opositor. Nas causas “não-perdidas” desde o início, há as que muito provavelmente poderão ser ganhas, e, no meio desses dois extremos, onde talvez se situe a maior parte das causas, as muitas cujos resultados dependerão de tantos fatores futuros e incertos, que não podem ser consideradas nem “perdidas”, nem “ganhas” logo de saída.
Há mais um complicador nesse universo de causas incertas: uma batalha judicial começa nas conversas preliminares e sigilosas com o cliente. Aqui já existe uma margem de possibilidade de erro, se o advogado porventura deixa de investigar o ocorrido pelo ângulo correto. Mas é com o início do processo judicial que os principais fatores de influência no sucesso ou frustração da causa incidirão. Esses fatores, todavia, não ocorrerão todas de uma só vez, mas num processo, isto é, num certo ritmo e ordem cronológica: o mistério das probabilidades não será revelado de uma vez, num único momento, mas às doses (falamos apenas dos processos judiciais, para simplificar o raciocínio, porém a advocacia envolve tantas outras vertentes, como a consultoria, por exemplo).
O autor produz sua prova documental com a petição inicial; o réu, com a defesa. As contraprovas são permitidas desde que no instante de desmentir outras provas, ou seja, que não sejam mera repetição das que já foram apresentadas originalmente. Só depois virão as demais provas, orais, periciais etc.. E só depois virá a sentença, que, entretanto, é apenas a primeira decisão do caso, sujeita a recursos (vários, em algumas situações, mais de um recurso na mesma instância). O trânsito em julgado se dará quando os recursos já estejam todos julgados. É neste momento, e apenas, após longa via crucis, que se desfaz por completo o mosaico de probabilidades e riscos envolvidos no processo. Em cada um desses momentos, diante de novos dados e fatores, o risco poderá pender para o ganho de uma ou de outra parte. Portanto, quando um advogado perde uma oportunidade, não é assim tão simples analisar, objetivamente, se essa oportunidade influiu no resultado, e, caso positivo, com que força.
Ao longo da carreira, já fomos algumas vezes consultados sobre se um determinado erro do advogado foi fatal no processo, e se, assim, haveria o dever de indenizar.
Isto, como vimos, depende de qual erro, e em qual momento do processo. O rito do processo é cadenciado conforme a lei. Há tempo para tudo. Para contestar, para requerer provas, para produzi-las, para recorrer etc.. Perder a oportunidade de contestar a ação, deixando o cliente à revelia — talvez um dos erros mais graves porque impede a formação do contraditório fático e envolve o primeiro e mais abrangente ato do processo —, é uma coisa. Perder o prazo de um recurso — e dependendo de qual dos recursos — é outra, evidentemente. É preciso estabelecer, em cada caso concreto, se aquele erro, sozinho, pode ser a causa insubstituível do fracasso. Isto é: se o erro não existisse, o resultado seria outro? Ou poderia ser outro?
Numa causa onde as versões fáticas são controvertidas, dependendo da oportunidade que se perde, a influência no resultado será uma; numa causa onde apenas questões de direito são discutidas (os fatos são incontroversos), outra. Na perda de um prazo de um recurso manifestamente incabível, o advogado não causa dano algum ao cliente; já num recurso de cabimento duvidoso, discutível ou difícil, qual terá sido o impacto da falha do advogado no resultado do processo?
Conforme Raimundo Simão De Melo, Procurador Regional do Trabalho (www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1785), na perda de uma chance “o que se indeniza não é o valor patrimonial total da chance por si só considerada, como equivocadamente se tem visto na maioria dos pedidos. O que se indeniza é a possibilidade de obtenção do resultado esperado; o valor da indenização deve ser fixado tomando-se como parâmetro o valor total do resultado esperado e sobre este incidindo um coeficiente de redução proporcional às probabilidades de obtenção do resultado final esperado. (…) Como se observa, não há falar em lesão ao direito subjetivo, mas, ao contrário, esta lesão ocorre em relação a um direito em expansão, (…) É preciso, todavia, que se trate de uma chance real e séria, que proporcione ao lesado efetivas condições pessoais de concorrer à situação futura esperada”.
O assunto vem sendo explorado no Brasil não faz muito tempo (talvez porque nem o Código Civil de 2002 tenha feito menção específica ao instituto ao tratar da responsabilidade civil). A teoria que lhe dá respaldo, todavia, não é nova. Surgiu no Direito francês (perte d’une chance), no século XIX e é largamente utilizada nos EUA e Europa. Hoje se aplica praticamente à perda de qualquer chance, inclusive na advocacia.

Mário Gonçalves Júnior é advogado do Rodrigues Jr. Advogados e pós-graduado em Direito Processual Civil e Direito do Trabalho.
mario.goncalves@rodriguesjr.com.br

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