O postulado dogmático do juiz (im)parcial, na sua concepção clássica iluminista, é fruto de ultrapassadas e objetivamente criticáveis tendências formalistas vinculadas ao pensamento que pressupõe a existência no processo de um juiz “eunuco” e totalmente “asséptico”, bem como ao princípio utópico e falacioso de que todos são iguais perante a lei.

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A visão meramente formalista cria uma falsa ilusão em relação ao ser humano juiz.

Na verdade, o juiz não é neutro e muito menos imparcial, pois, de certa forma, ele está vinculado às suas concepções sociais, econômicas, culturais, psicológicas e ideológicas. É um ser histórico e fruto de seu tempo.Ao mesmo tempo, os poderes disciplinar e biopolítico disseminados perifericamente num determinado momento histórico da humanidade sugestionam a sua subjetivação , bem como sua performance no âmbito da relação jurídica processual.

Não sendo o juiz neutro, muito menos (im)parcial, deve-se romper com essa visão meramente formalista e iluminista, sugerindo-se uma nova leitura para o princípio da (im)parcialidade do juiz. E essa leitura está consubstanciada na diferenciação entre a parcialidade negativa e a parcialidade positiva.

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Na perspectiva humanística do processo, é necessário que o magistrado seja positivamente parcial.

Por meio do principio da parcialidade positiva, as diferenças sociais, culturais, econômicas, étnicas, raciais etc. deixam de ser fatores neutros e extra-processuais, e passam a constituir critérios éticos materiais para a persecução de um processo, como dizem os italianos, giusto e équo.

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O princípio do juiz positivamente parcial, que garante o reconhecimento das diferenças sociais, econômicas, culturais das pessoas envolvidas na relação jurídica processual, seja ela civil ou penal, tem por fundamento, além da concepção filosófica da racionalidade ou alteridade do outro, desenvolvida por Enrique Dussel e Emmanuel Lévinas, também a determinação Constitucional prevista no artigo 3.º, inciso I, III e IV da C.F. Não se deve esquecer que o Poder Judiciário faz parte da República Federativa do Brasil, e, conseqüentemente, deve perseguir no âmbito de sua função primordial os objetivos fundamentais desta República traçados pela Constituição.

A parcialidade positiva do juiz, portanto, é fruto de uma racionalidade crítica que visa a romper com a totalidade do sistema vigente, com a clausura e delimitação da vida a partir da mera conservação do sistema.

O juiz deve reconhecer a exterioridade das vítimas que se apresenta transcendentalmente no processo, para o efeito de introduzir no âmbito da relação jurídica processual penal ou civil uma ética material voltada para a produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana.

Assim, deve o magistrado libertar-se da dogmática de seu “solipsismo”, de sua “subjetividade asséptica”, para alcançar o “outro” que se encontra num âmbito transcendental, realçando desta forma a sua responsabilidade pré-ontológica no campo da relação jurídica processual.

O juiz não deve tematizar o Outro (vítima inferiorizada na relação jurídica processual), mas desenvolver um desejo metafísico de proferir uma decisão équo e justa, segundo sua responsabilidade ética pré-originária à totalidade do sistema jurídico dominante.

Tendo em vista essa responsabilidade ética pré-originária não tematizadora do “Outro”, o método analético antecede a própria dialética existente no âmbito da relação jurídica processual, permitindo, desta forma, a abertura efetiva ao “Outro” e, concomitantemente, a derrubada do sistema e da totalidade cerrada, para o fim de liberar o Outro negado em sua dignidade.

Para a concretização desse postulado, o arquétipo de uma Justiça representada pela deusa Témis (a deusa da Justiça), com os olhos vendados, segurando em uma das mãos a espada e na, outra uma balança em equilíbrio, deve adequar-se a esse método analético. A venda da deusa da Justiça necessita ser retirada para que se possa reconhecer no processo a racionalidade do outro, a sua diferença sóciocultural-político-econômica. A balança, diante da realidade latino-americana, deve ser desequilibrada, a fim de representar as desigualdades sociais, econômicas e culturais existentes num continente regrado por injustiças sociais. E a espada, por fim, deveria ser substituída por uma “lupa’ para que se possam avistar as concepções ideológicas que existem por detrás de um determinado ordenamento jurídico de cunho capitalista e neoglobalizante.

(Artigo com base na obra: A Parcialidade Positiva do Juiz publicada pela Editora Revista dos Tribunais).

Artur César de Souza é doutor pela Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutor pelas seguintes Universidades: Università Statale di Milano, Universidad de Valência, Universidade Federal de Santa Catarina. Juiz Federal da Vara de Execuções Fiscais. Pesquisador da Capes.