(…) O DIP, qual outros ramos da ciência jurídica, há de trabalhar com variados princípios, idéias, normas e exceções, próprios às suas diversas e complexas questões, e aos múltiplos grupos em que se dividem, subdividem, esgalham-se e se ramificam as relações com que disciplina, na finalidade precípua de realizar a justiça e a eqüidade na expansão espacial dos seres humanos, nos fatos sociais conectados com sistema jurídicos positivos divergentes. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado.vol.1, 4.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1974. p.85.
Tradicionalmente, a disciplina Direito Internacional Privado é concebida como sobredireito ou superordenamento, ou seja, ramo jurídico que tem por objetivo indicar a norma que vai solucionar o conflito entre normas oriundas de ordenamentos jurídicos distintos, que incidem sobre determinada relação jurídica com conexão internacional (jus supra jura). “Acima das normas jurídicas materiais destinadas à solução dos conflitos de interesses, sobrepõem-se as regras sobre o campo da aplicação destas normas. São as regras que compõem o chamado sobredireito, que determinam qual a norma competente na hipótese de serem potencialmente aplicáveis duas normas diferentes à mesma situação jurídica”.(1)
Dentro dessa concepção, o Direito Internacional Privado tem uma função designativa, quer dizer, apenas determina qual o direito deve ser aplicado no caso concreto, sem se preocupar com o seu conteúdo material, com a resolução da questão ou com a justiça do resultado final. Utiliza-se, para tanto, o método conflitual tradicional, com caráter absoluto, normalmente através de uma disposição rígida de elementos de conexão.
A falta de engajamento dessa concepção clássica da disciplina tem feito surgir, mais recentemente e de forma paulatina, uma concepção relativizada do sistema conflitual. A normas de conflito são mantidas, embora enquadradas numa nova concepção. Elas são pautadas pelos valores da dignidade humana, através da aplicação das exceções de ordem pública e normas imperativas, e estão cada vez mais harmonizadas, através da celebração de Convenções Internacionais entre os diversos Estados.
Além disso, são incorporados ao Direito Internacional Privado outros instrumentos destinados a resolver os casos multiconectados, conforme listados a seguir:
Normas materiais. Têm por objetivo determinar o resultado a se atingir. Muito comum nos assuntos referentes à condição jurídica do estrangeiro ou extradição, passaram a ser incorporadas em tratados internacionais. A Convenção da Haia sobre Cooperação Internacional e Proteção e Crianças e Adolescentes em Matéria de Adoção Internacional, de 1993, prescreve em seu artigo 1.º: “A presente Convenção tem por objetivo: a) estabelecer garantias para assegurar que as adoções internacionais sejam feitas segundo o interesse superior da criança e com respeito aos seus direitos fundamentais conforme reconhecidos pelo direito internacional.”
Expansão da Autonomia da vontade. Tradicionalmente ligada ao direito contratual, começa ser admitida em outras áreas, como o direito de família que, no Brasil, a partir do Novo Código Civil, permite a modificação do regime de bens depois de realizado o casamento (art. 1639, par. 2.º), valendo o mesmo para relações com elemento estrangeiro.
Princípio da Proximidade. Consolidado a partir do entendimento de que a lei aplicável deve ser aquela mais próxima das partes, com mais forte ligação (most significant relationship), conforme proposto pela doutrina e acolhido pela jurisprudência norte-americana., foi incorporado não só em Tratados Internacionais mas também em leis locais, como a Lei de DIP da Suíça (1987), que estabelece, no artigo 1º. que, salvo se as partes acordarem sobre a escolha da lei aplicável (art. 2.º), “O direito designado pela presente lei não será aplicado se, excepcionalmente, o objeto estiver, tendo em vista todas as circunstâncias, vinculado de modo fraco (slightly connected) com esta lei e demonstre um vínculo mais estreito (much a stronger connection) com uma outra lei”.
Escolha da norma a partir do resultado final. Desenvolvida nos EUA principalmente em matéria de responsabilidade civil, a partir do caso Babcock, foi incorporada em instrumentos internacionais, como a referida Convenção da Haia sobre a Adoção que, no caso de um conflito, exige a escolha da lei conforme o objetivo último: a proteção da criança.
Normas narrativas. Embora não vinculem as partes, funcionam como verdadeiros roteiros para o aplicador da lei, ao sugerirem procedimentos e valores a serem levados em consideração em caso de conflito de leis.
Regras alternativas. Oferecem uma série de regras de conexão para se optar mediante o caso concreto. É o caso da Convenção da Haia sobre os Conflitos de Lei em Matéria de Forma das Disposições Testamentárias, de 1961, que em seu artigo 1.º estabelece: “Uma disposição testamentária é válida quanto à forma se esta corresponder à lei interna: a) do lugar onde o testamento foi feito, ou b) de uma das nacionalidades do testador, seja ao tempo da celebração do testamento, seja ao tempo de sua morte, ou c) do lugar onde o testador tenha domicílio, seja ao tempo da celebração do testamento, seja ao tempo de sua morte, ou d) do lugar onde o testador tenha sua residência habitual, seja ao tempo da celebração do testamento, seja ao tempo de sua morte, ou e) do local da situação dos bens, no que se refere aos bens imóveis”.
Nádia de ARAÚJO explica de forma detalhada essas mudanças que vêm ocorrendo na disciplina e conclui que “as novas tendências do DIPr, surgidas da dificuldade em resolver todos os problemas apenas com as regras de conexão clássicas, resultaram na superação do método conflitual como sistema exclusivo. Várias técnicas tem sido usadas para flexibilizar o método, com a utilização de normas flexíveis, normas alternativas, normas narrativas e normas materiais de DIPr.”(2)
(1) DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado. Parte Geral. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 25.
(2) ARAÚJO, Nádia de. Direito Internacional Privado – Teoria e Prática Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.453.
Tatyana Scheila Friedrich é mestre/UFPR, professora substituta de Direito Internacional Privado da UFPR e professora adjunta de Direito Internacional Público das FIC – Faculdades Integradas Curitiba.