A morte da tragédia

Morreu domingo, vítima das conseqüências de um ataque cardíaco, o general chileno Augusto Pinochet, aos 91 anos de idade. Emergindo como chefe do golpe militar que derrubou o governo constitucional de Salvador Allende, levando-o ao suicídio, Pinochet empalmou o poder absoluto e deu alma à sanguinária ditadura que dominou o Chile de 1973 a 1990.

A presidente Michelle Bachelet tem uma relação íntima com o golpe. Seu pai, general Alberto Bachelet, militar de alta patente leal ao governo democrático de Allende, foi dado como desaparecido pouco depois do golpe e, ela mesma, um dos milhares de chilenos a sofrer na carne, sobretudo pela tortura infame, a dureza implacável do regime de exceção hoje responsabilizado pela morte de três mil pessoas.

O governo decidiu não conceder ao ditador o funeral típico de chefe de Estado, restringindo às Forças Armadas o dever de velar e sepultar o ex-comandante-em-chefe com honras militares. Segundo informações procedentes de Santiago, a família de Pinochet expressou o desejo de que o cadáver seja cremado.

As manifestações da população, a maioria comemorando a morte do ditador, descambaram em confronto violento entre grupos rivais, obrigando a ação policial. Por causa disso, o corpo de Pinochet foi levado às escondidas, em plena madrugada, para a Escola Militar, onde foi montado o velório, sob suspeitas de tentativas de profanação.

Desaparece assim o último ditador ainda vivo daquele círculo de poder tenebroso, arrogante e vingativo que se abateu sobre os países do Cone Sul. Senador vitalício por decreto proclamado antes da entrega do poder ao sucessor eleito, nos últimos tempos o tirano viveu no ostracismo iniciado pela inesperada prisão em Londres.

O desencanto sem glória do alquebrado general só era interrompido em datas especiais por áulicos esforçados que o serviram desde a ditadura, pessoas ainda presentes e atuantes na sociedade chilena. Como bem lembrou um professor de história contemporânea da Unicamp, ?vai-se o homem, mas fica a sua obra?. Nesse momento, não faltam empedernidos e nostálgicos do poder discricionário a arrulhar a cantilena golpista.

A Casa Branca emitiu inodoro comunicado onde afirma que ?as orações do povo norte-americano estão com os chilenos?. Para o presidente Lula, morreu o homem que simbolizou um período cinzento na história política da América do Sul. Defensores dos direitos humanos lamentam que o braço da Justiça não tenha alcançado o ditador antes do sono eterno.

O juiz espanhol Baltazar Garzón, autor da ordem de prisão de Pinochet, que se encontrava em visita a Londres, cumprida pelo governo inglês e relaxada meses depois em função do precário estado de saúde do prisioneiro, demonstrou lucidez ao reclamar o prosseguimento das investigações sobre o desaparecimento de inúmeros cidadãos espanhóis em território chileno, durante a ditadura.

De qualquer forma, encerra-se o ciclo que deixou marcas profundas na consciência libertária das nações oprimidas. O melhor exemplo é dado pelas Mães da Praça de Maio, que até hoje choram a morte de filhos e netos tragados pela insanidade da ditadura argentina. Milhares de mortos e desaparecidos, sendo esses últimos personagens forjados pela lógica maniqueísta das esferas dominantes na tentativa de ocultar a realidade nua e crua, continuam a clamar por justiça.

O horrendo estigma da profanação de consciências ainda não se extinguiu.

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