Escrevo estas mal traçadas linhas com o objetivo de provocar uma reflexão, em quem de direito, acerca de um tema que, de certa forma, tem passado despercebido entre os operadores do Direito.
Eis o caso: Por um motivo qualquer, um cidadão ameaça o vizinho de lhe causar mal injusto e grave. O caso vai parar na polícia. A vítima manifesta o deseja de ver o autor do fato processado. Lavrado o termo circunstanciado, os autos sobem ao Juizado.
Ali, o Ministério Público, que é o titular da ação penal, entende que o fato descrito pela vítima não pode ser considerado crime e, por isso, pede o arquivamento do termo circunstanciado, o que é aceito pelo juiz.
A vítima que, de fato, é assistente de acusação, recorre da decisão querendo que a Corte, reformando a decisão do magistrado, encaminhe os autos ao Procurador-Geral, nos termos do art. 28 do CPP, para que este, então, designe outro Promotor de Justiça para oferecer denúncia.
A Corte, todavia, seguindo o entendimento majoritário da jurisprudência brasileira, deixa de receber o recurso, por entender ser irrecorrível a decisão que determina o arquivamento de inquérito, ou no caso, de termo circunstanciado.
Ou seja, se o Promotor e o Juiz estiverem de acordo quanto ao arquivamento, a parte, que se acredita injustiçada, nada pode fazer. A matéria é irrecorrível e ponto final.
Ponto final? Não, pois o assunto comporta algumas reflexões.
A primeira: a impossibilidade de questionamento de decisões em matéria penal não é apropriada para um país que se diz democrático e que pretende viver num Estado de Direito.
A segunda tem a ver com o princípio da isonomia. Se, nos termos do art. 28 do CPP, a revisão da matéria (pelo Procurador-Geral) é obrigatória quando o juiz discorda do pedido de arquivamento de inquérito, por que é que no caso inverso (quando o juiz concorda), a decisão não poder ser revista por um órgão superior? Não são os dois lados de uma mesma moeda? A via, aí, não teria duas mãos?
A terceira diz respeito ao princípio do duplo grau de jurisdição. Para muitos, esse princípio não é constitucional, tanto que, embora em casos raros encontrados na legislação infra-constitucional (Art. 34, da Lei 6.830/80; arts. 30/33, da Lei 9307/96), o legislador o proibiu expressamente. Mas, ainda que se considere não expressamente agasalhado pela Constituição, o magistrado poderia, sem lei expressa, pura e simplesmente deixar de aplicá-lo, barrando a subida de um recurso ao Tribunal, notadamente em matéria penal, sob o argumento de não haver previsão expressa de seu cabimento?
Por último, a quarta ponderação: A questão da segurança. É inegável que o duplo grau de jurisdição se constitui numa garantia tanto das partes quanto dos próprios julgadores. Da parte porque, estando insatisfeita com a decisão, pode pleitear a reforma via recurso à instância superior. Do magistrado por saber que eventual injustiça de sua decisão poderá ser corrigida por colegas mais experientes, que atuam no colegiado da segunda instância.
Portanto, ainda que não haja expressa previsão legal, tem a vítima legitimidade, como assistente de acusação, para recorrer da decisão que, acolhendo requerimento do Ministério Público, determine o arquivamento do termo circunstanciado, devendo o recurso ser conhecido pela instância superior e julgado, como de direito.
Gilberto Ferreira é juiz de Direito Supervisor do 1.º Juizado Especial Criminal da Capital e professor da PUC e das Escolas da Magistratura Estadual e Federal.
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