A “menor elegibilidade” (“less eligibility”) da prisão

O princípio da “less elibigility” nasceu na Inglaterra, em 1834, com a “Poor Law Amendment Act” (lei do alívio dos pobres). Seu significado original era o seguinte: as condições de trabalho nas prisões (nas “workhouses”) deveriam ser piores que o pior emprego fora desses reformatórios. A condição do mendigo no reformatório não pode ser mais atraente que a de um trabalhador da classe mais baixa fora dele.

As razões desse princípio: (a) não estimular o trabalhador a querer ingressar nesses reformatórios (a ambiência dentro dos reformatórios tem que ser a “menos elegível” pelas classes pobres); (b) impedir que as pessoas reivindicassem mais assistência aos pobres dentro dos reformatórios (se fora tem gente em pior condição, por que reivindicar melhores vivências para os que estão dentro dos reformatórios).

Seu significado cultural dentro do discurso punitivista (e desumano), que passou a ser difundido amplamente, sobretudo em países que vivem permanentemente o clima selvagem da guerra civil, é o seguinte: as condições de vivência na prisão assim como o tratamento dos presos têm que ser piores do que as condições de vida da classe trabalhadora externa mais baixa e mais depauperada.

Há um artigo de autoria de Marilda Tregues de Souza Sabatine (acessado em 23.08.11) que bem explica o tema. Pelo princípio da less eligibility (diz a referida autora) “o lugar destinado à prisão deve ser tão indigno e assustador, que ninguém possa ser encorajado a ali desejar permanecer. O cerne deste princípio é fazer com que até mesmo o mais desafortunado dos indivíduos esteja mais bem instalado que qualquer outro que na prisão se encontrar.”

O princípio da “less eligibility”, portanto, estava originalmente voltado para as condições de trabalho (dos miseráveis) dentro dos reformatórios, não para o (pior) tratamento do preso. Sob o influxo das culturas punitivistas (selvagens) o princípio se distanciou do seu sentido original.

A pena de prisão sempre significou, na prática, “colocar o criminoso em lugar desprezível, aquém das condições de vida do mais pobre da sociedade.”

Teoricamente, durante muitos anos, o discurso não era esse, sim, o da ressocialização do preso (que significa trabalho, educação, religião, família, classificação, tratamento do preso etc.). Mas desde a década de 1970 nos EUA e na Europa foi decretado o fim da ideologia ressocializadora. A partir daí a prisão passou a ter uma única função: a de inocuizar (segregar) o sujeito desviado (prevenção especial negativa).

O fim do Estado de Bem-Estar social (nos EUA e na Europa) somado com (a) as ideologias punitivistas da tolerância zero (EUA, década de 80), (b) com o direito penal emergencial (Europa, década de 70), com (c) o tratamento puramente estatístico da criminalidade (a partir da década de 80), com (d) o direito penal do inimigo mais (e) o populismo penal (crença de que o rigor penal é solução dos conflitos), viria a culminar no nascimento da prisão-jaula (anos 90), que em países culturalmente mais selvagens se transformou em verdadeiros campos de concentração (e de extermínio), que são realidades mais adequadas ao chamado direito penal de guerra, que não tem “presos”, sim, “inimigos prisioneiros”.

A lógica do castigo, nesse contexto, é a seguinte: “Para que o castigo produza o efeito que se deve esperar dele, basta que o mal que causa ultrapasse o bem que o culpado retirou do crime” (Foucault).

Essa lógica apresenta total sintonia com o sentido culturalmente punitivista extraído do princípio da “less elebigibility”, ou seja, “o ambiente prisional deve expor o apenado a uma vivência inferior àquela que é sentida pelas classes mais impossibilitadas economicamente de uma sociedade.” (Marilda Sabatine).

O imaginário punitivista coletivo está convencido de que “Se o ambiente prisional não oferecesse condições horríveis ao apenado, não sortiria o efeito desejado, ou seja, a intimidação que a prisão deve dar.”

É fácil concluir (diz a autora citada) “que o sistema prisional brasileiro deita suas raízes no less eligibility. A realidade social e econômica das prisões do Brasil é a prova concreta de que a legitimação do controle social continua sendo exercida por uma minoria (representativa do capitalismo como no século XVI e XVII) sobre muitos”.

A ambiência prisional, sobretudo no Brasil, tornou-se um território sem lei (campo do não direito). A violência nas prisões e delegacias constitui “um meio necessário segundo a cultura brasileira, para manutenção da ordem, ou mesmo por uma questão de imposição, sob pena de deixar os delinquentes mal acostumados.” (Marilda Sabatine).

Todo tipo de ilegalidade e arbitrariedade praticado dentro dos presídios raramente tem apuração e punição. Predomina aqui o não direito. “Sob a ótica do princípio da less eligibility, autoridades que praticam atos de violência em relação aos apenados são “heróis”, pois defendem a sociedade destes seres “matáveis” [mortáveis].” (Marilda Sabatine).

A história das penas, por tudo quanto está exposto, sempre gerou muito mais violência que a história dos crimes (Ferrajoli).

Luiz Flávio Gomes é Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Encontre-me no Facebook.

 

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