A Medida Provisória duradoura: uma emenda inconstitucional

A Constituição Federal de 1988 mereceu aplausos demorados, no aspecto aqui sob relevo, ao não conceder abrigo ao Decreto-lei, instituto desprezível utilizado no passado recente da nossa história, que possuía, por força da conformação conferida pela Constituição Federal de 1967, como emendada em 1969, a peculiar característica de, uma vez editado pelo presidente da República, franquear ao Congresso Nacional a possibilidade de apreciá-lo no prazo de 60 dias, aprovando-o ou rejeitando; caso, contudo, permanecesse inerte, tal comportamento omissivo, do Congresso Nacional, equivaleria à sua aprovação.

Pois bem, tomando seu lugar, criaram, os constituintes de 1988, a Medida Provisória, com força de lei, que tantas discussões e debates estimulou, notadamente entre os estudiosos da matéria jurídico-constitucional, dado que os presidentes da República brasileira se esmeraram na utilização abusiva e indiscriminada deste veículo normativo.

Diante da profusa utilização do instituto e das censuráveis reedições e convalidações ocorridas, animou-se, o Congresso Nacional, a restringir o exercício da competência presidencial, não obstante cerceando parte dos poderes que até então detinha, impondo-se prazos e limitações, através da Emenda Constitucional n.º 32/2001.

Despercebidamente, contudo – e aqui eis o ponto nuclear que estimulou as presentes considerações -, fez alojar, nesta Emenda n.º 32, um dispositivo que faz em muito lembrar o Decreto-lei, no seu traço essencial: o de ser aprovado e permanecer em vigor, com caráter de definitividade, sem contar com a deliberação do Congresso Nacional.

Deveras, no art. 2.º, fez constar: As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional.

Como se observa, o Congresso Nacional criou a Medida Provisória duradoura, ou seja, que não possui o regime jurídico aplicável às Medidas Provisórias que lhe antecederam, mas que foram afastadas ou aprovadas comissivamente pelo Congresso Nacional, como, também, não possui o regime jurídico aplicável às Medidas Provisórias produzidas após a Emenda Constitucional n.º 32/2001.

Diferentemente de ambas, possui a singular aptidão de permanecer em plena vigência e eficácia, se e enquanto o presidente da República não dispuser sobre a matéria diferentemente, ou o Congresso Nacional animar-se a deliberar sobre a matéria, definitivamente.

Ora, esta deliberação do Congresso Nacional, na forma de Emenda Constitucional, contribuiu para que o presidente da República ingressasse efetivamente na história brasileira, como o único Chefe de Estado que, sob os auspícios da atual Constituição Federal, editou verdadeiros Decretos-lei, dispondo sobre diversos temas ao seu exclusivo talante, sem qualquer oposição, ou, mesmo, mera reflexão, do Poder Legislativo.

As Medidas Provisórias foram aprovadas por Emenda Constitucional, sem o exame do seu conteúdo! Um despautério, sobretudo para aqueles que possuem obsequioso respeito pela maiúscula expressão Estado Democrático de Direito, como insculpida no art. 1.º, da Constituição Federal.

Registremos, de maneira sumária, com evidente constrangimento, alguns dos assuntos que foram objeto da determinação presidencial, impostos à nação e a todos obrigando, em evidente afronta à ordem constitucional, tal qual concebida em 1988: (I) contribuição social sobre o lucro que passou a ser exigida de contribuintes sobre os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior, por pessoas jurídicas domiciliadas no Brasil (MP n.º 2.158-35/01); (II) modificação na legislação sobre a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (MP 2.228-1/2001); (III) criação, reestruturação e organização de carreiras, cargos e funções comissionadas técnicas no âmbito da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional (MP n.º 2.229-43/2001); (IV) fixação de multa relativa a informações sobre capitais brasileiros no exterior (MP n.º 2.224/2001); (V) instituição do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias (MP 2.221/2001); (VI) instituição da Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil (MP 2.200-2/2001); (VII) disposição sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, a repartição de benefícios e o acesso à tecnologia e transferência de tecnologia para sua conservação e utilização (MP 2.186-16/2001); (VIII) disposição sobre os planos privados de assistência à saúde (MP 2.177-44/2001); (IX) instituição, no âmbito do Poder Executivo da União, do Programa de Desligamento Voluntário – PDV, a jornada de trabalho reduzida com remuneração proporcional e a licença sem remuneração com pagamento de incentivo em pecúnia, destinados ao servidor da administração pública direta, autárquica e fundacional (MP 2.174-28/2001); (X) estabelecimento de nulidade de determinadas disposições contratuais, invertendo, nas hipóteses que prevê, o ônus da prova nas ações intentadas para sua declaração (MP 2.172-32/2001); (XI) alteração da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, para dispor sobre o trabalho a tempo parcial, a suspensão do contrato de trabalho e o programa de qualificação profissional (MP 2.164-41/2001); (XII) disposição sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente (MP 2.163-41/2001); e, (XIII) criação da Agência de Desenvolvimento da Amazônia (MP 2.157-5/2001) e da Agência de Desenvolvimento do Nordeste – Adene (MP 2.156-5/2001).

Como se observa, o Presidente da República, contando com a ativa (ou passiva, dependendo do sistema de referência adotado) participação do Congresso Nacional, dispôs, como quis, sobre temas de extrema relevância e urgência – requisitos das Medidas Provisórias -, que reclamariam, num Estado Democrático de Direito, o debate aprofundado dos representantes do povo (Câmara dos Deputados) e dos Estados Federados (Senado Federal).

A Medida Provisória duradoura, à evidência, a par de caracterizar uma anomalia política, padece de profunda antijuridicidade, vez que as emendas constitucionais, sabe-se, somente merecem o acolhimento constitucional, caso formal e substancialmente não colidam com as bases sobre os quais se erige o ordenamento jurídico constitucional.

O Supremo Tribunal Federal certamente será instado a se pronunciar sobre esta deformação jurídica, face o nítido vício de inconstitucionalidade que impregna a Emenda Constitucional em apreço, ou, se preferirem, em razão da absoluta desconformidade substancial que porta em relação à Constituição Federal.

Marcio Pestana

é advogado, professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da FAAP – Fundação Armando Alvares Penteado – São Paulo-SP.

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