A maioridade penal e a brutalização dos jovens

O sistema protetivo adotado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – no campo das medidas socioeducativas, traz resultados práticos inegavelmente bons. Poderiam ser melhores, se houvesse maior investimento na estruturação dos serviços necessários à execução das medidas. Mas podem igualmente ser melhorados, mesmo com as estruturas atuais, desde que os agentes envolvidos, juízes, promotores de justiça, conselheiros, técnicos, advogados, policiais, voluntários, pessoas da comunidade, saibam manejar os instrumentos jurídicos disponíveis no sentido de torná-los mais eficazes. De qualquer modo, a idade limite da imputabilidade penal não deve ser rebaixada, pois isso significaria jogar num sistema penal saturado, com gravíssimos problemas e altos índices de reincidência, adolescentes que hoje são processados na Vara da Infância e submetidos a medidas socioeducativas, cujos índices de reincidência são muito menores.

Além disso, convém notar que a brutalização de um ser humano corresponde a um processo de desumanização, que não se perfaz da noite para o dia, nem é resultado de um só momento. Reflete uma história de vida, marcada por ausências e solidão, sofrimentos diários acumulados, perdas humanas e materiais, desnutrição e fome, falta de oportunidades essenciais, omissões dos pais, da família, do Estado, geradores da desconfiança, do ódio irracional, da busca de lenitivas nas drogas, de lealdades provisórias baseadas na conveniência, tudo levando a um só estuário: a luta pela sobrevivência, na qual prevalece a lei do mais forte; um quadro moral caracterizado pela promiscuidade, ausência de referências e valores; a busca de meios, geralmente ilícitos, para obtenção de renda pessoal e complementação de renda familiar.

Esse perfil corresponde à maioria dos casos de crianças e adolescentes que praticam atos infracionais no Brasil. Reduzir a idade da imputabilidade penal seria intervir apenas nos efeitos dessa triste realidade. Ademais, não tocaria as causas sociais desse processo de desumanização e exclusão social, ao contrário, lhe daria de modo perverso uma espécie de corolário, pois jogaria no sistema penal adolescentes “brutos” e “desumanos”, os quais assim teriam no sofrimento da sanção penal a conseqüência “merecida” de sua bruteza e culpa, agora reconhecidas por lei. Isso daria à visão do todo um sentido de falsa coerência.

Acompanhando o raciocínio de Tarcísio José Martins Costa, A diminuição da idade penal, além de simplista, tem uma faceta discriminadora, pois irá recair sobre a parcela mais carente da população juvenil, da qual certamente sairiam para as cadeias os adolescentes a partir de 16 anos. É também desumana, na medida em que irá condenar duplamente o menor: por ser objeto de um processo de marginalização social, para o qual não deu qualquer contribuição, e por ser agente de ato infracional, para o qual foi conduzido pelo próprio processo de exclusão social. Como disse muito bem o desembargador Celso Luiz Limongi, tentar erradicar o crime valendo-se das normas penais é reincidir na quimera do Rei Canuto, que pretendeu dar ordem ao mar para que este recuasse. Por outro lado, aceitar a fórmula autoritária da redução da idade penal constitui gravíssimo retrocesso, uma vez que o limite de 18 anos converteu-se praticamente em regra internacional, sendo recomendado por importantes documentos supranacionais e adotado pela maioria dos países (Áustria, Colômbia, Dinamarca, Finlândia, França, Holanda, México, Peru, Suíça, Uruguai, a maioria dos Estados norte-americanos e da Austrália, e muitos outros)” (Jornal da Associação Brasileira dos Magistrados da Infância e da Juventude, Ano V, n.10, ).

Cumpre, portanto, repensar o problema sem perder de vista suas causas. Por isso vale repetir com Mello Mattos que a sociedade é para com eles mais culpada do que eles o são para com a sociedade; eles são, antes, as vítimas do que os autores responsáveis. Ao lado da sociedade, também o Estado e a família são indicados expressamente, pelo art. 227 da Constituição Federal, como co-responsáveis pelo atendimento dos direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente.

Aqui se deveria concentrar toda a energia individual e coletiva, proveniente da justa indignação diante dos atos criminosos perpetrados por adolescentes: cobrar dos responsáveis – Estado, família e sociedade – ações e políticas concretas e urgentes, eficazes e suficientes, em termos de atendimento daqueles direitos fundamentais específicos enumerados no art. 227 da Carta Magna, acima de toda retórica partidária com fins eleitorais. Pois é no trabalho social da transformação daqueles direitos declarados em direitos efetivados que se encontrará o melhor meio de combate à criminalidade juvenil. Um meio bem menos custoso e difícil do que, mais tarde, abrigar tais pessoas em celas de cadeias e penitenciárias, cuja vaga individual é muito mais onerosa do que a de uma creche ou pré-escola, de uma escola do ensino fundamental ou médio ou de um programa de contraturno.

Ruy Muggiati

é juiz de Direito da Vara da Infância e Juventude da comarca de Foz do Iguaçu.

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