A Constituição da República estabelece, no art. 14, parágrafo 3.º, as condições de elegibilidade, quais sejam, pleno exercício dos direitos políticos (não sujeição às hipóteses de suspensão ou perda de direitos políticos art. 15, da CF), nacionalidade brasileira, alistamento e domicílio eleitoral, filiação partidária e idade mínima, variando de dezoito, no caso de candidato a vereador, a trinta e cinco, caso do candidato a Presidente, Vice e Senador.
Na sequência, o legislador constituinte elenca os casos de inelegibilidade, aí incluídos os inalistáveis e os analfabetos (§ 4.º do art. 14), além do cônjuge e parentes até segundo grau, consangüíneos, afins ou por adoção, dos titulares do Poder Executivo ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição (§ 7.º do art. 14).
Por fim, a Constituição possibilita que por lei complementar sejam estabelecidas outras hipóteses de inelegibilidade. Tais hipóteses restaram disciplinadas pela Lei Complementar 64 de 1990, a chamada Lei das Inelegibilidades.
Ocorre que por iniciativa popular, o Congresso recentemente aprovou a chamada Lei da Ficha Limpa que nada mais é do que a Lei Complementar 135 de 2010, aprovada no dia 04 de junho de 2010 pelo Presidente da República, e que entrou em vigor alterando dispositivos da LC 64 de 1990. Referida lei surgiu da iniciativa do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral e contou com mais de 1,6 milhão de assinaturas de eleitores(1).
Mal surgiu e já começou a suscitar algumas dúvidas. A primeira atinente à sua aplicabilidade. Esta primeira dúvida restou recentemente sanada, pois o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em resposta à consulta formulada pelo senador Arthur Virgílio (PSDB), entendeu que a lei não altera o processo eleitoral e pode ser aplicada já para as eleições de 2010(2). A segunda dúvida coloca em cheque a própria constitucionalidade formal da lei. Isto porque, após aprovado pela Câmara dos Deputados, o projeto que culminou na LC 135 seguiu ao Senado. Lá o Senador Dornelles (PP-RJ) apresentou uma emenda para condicionar a inelegibilidade a condenações ulteriores à vigência da nova lei. Para tanto, trocou a expressão “os que tenham sido” pela expressão “os que forem” condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena. A questão é relevante, na medida que as alterações substanciais em projetos de lei feitas pelo Senado implicam em retorno do processo legislativo à Câmara dos Deputados, em observância ao princípio do bicameralismo. Assim dispõe do art. 65, da CF/88, e seu parágrafo único: O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar. Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora.
A lei, assim, somente não seria considerada inconstitucional caso os tribunais viessem a entender que a emenda fora de mera redação. É bom lembrar que há recente precedente do STF, ao rejeitar o pedido de declaração de inconstitucionalidade formal da Lei n.º 8.429/92, que define os atos de improbidade administrativa, porque o substitutivo aprovado pelo Senado não alterou substancialmente o projeto remetido pela Câmara dos Deputados(3).
As principais alterações introduzidas pela LC 135 de 2010 dizem respeito ao prazo da sanção de inelegibilidade imposta, majorado de 03 (três) para 08 (oito) anos.
Além disso, passam a ser considerados inelegíveis os que tenham contra sua pessoa ação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes.
Ou seja, não importa se houve trânsito em julgado (decisão irrecorrível). Mesmo as condenações criminais passam a dispensar coisa julgada material, pois a partir do advento da referida lei tornam-se inelegíveis aqueles condenados, em decisão proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena. Ou seja, não basta a condenação imposta por um juiz monocrático (de primeiro grau), exigindo-se decisão colegiada, de um tribunal, ainda que não definitiva, porque sujeita recurso. Entretanto, não são todas as condenações criminais colegiadas, mas aquelas pelos crimes constantes do art. 1.º, inciso I, alínea e, da LC 64/90 (com redação agora dada pela LC 135/2010), incluindo-se aqui, por exemplo, os crimes contra a administração pública e o patrimônio público, eleitorais, de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos, contra a vida e aqueles praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando.
Além destas condenações criminais, por abuso de poder político, econômico e uso indevido dos meios de comunicação, também os candidatos que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato de improbidade ou que tenham sido condenados por qualquer outro ato de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde que, nestes últimos casos, praticados com dolo, serão declarados inelegíveis por 8 (oito) anos, o mesmo valendo para agentes públicos demitidos em processo administrativo disciplinar; exceção deve ser feita aqui aos magistrados e promotores, cuja pena de perda do cargo requer decisão judicial (com trânsito em julgado, entendo), por obediência ao art. 95, inciso I, parte final, da Constituição da República, que não pode ser revogado por lei infraconstitucional.
Mas de todas as alterações introduzidas pela LC 135 de 2010, realmente as que mais impressionam os que militam na seara eleitoral são aquelas constantes da nova redação do art. 15 e do incluído inciso XVI, do art. 22, da LC 64/90. Até então, para que um candidato fosse cassado ou declarado inelegível, era necessário mais do que o reconhecimento da ilicitude ou abusividade de sua conduta. Era necessário, ressalvados alguns entendimentos em contrário, que o tribunal reconhecesse, com decisão transitada em julgado, que a conduta era potencialmente lesiva, ou seja, que a conduta tinha a capacidade de interferir no resultado das eleições.
E não são poucos os exemplos na jurisprudência de julgados que, em que pese reconhecessem ser ilícita dada conduta de um candidato, ao abusar do poder político ou econômico, absolviam-no por entenderem ausente a influência no resultado das eleições. Neste sentido, por exemplo: “a alegação de que servidores da Justiça Eleitoral tenham sido agredidos durante o cumprimento de diligência, apesar da possível configuração do crime eleitoral, não demonstra potencialidade lesiva sob a perspectiva do abuso de poder econômico”(4). Neste julgado o TSE entendeu que a conduta ilícita não influenciou o resultado das eleições e por isso o candidato não seria cassado. Em outro, o TRE-SE entendeu que o fornecimento de bens a particulares, às custas de recursos públicos, não teria influenciado no resultado de determinada eleição, deixando, assim, de aplicar a pena de cassação e inelegibilidade: “O cotejamento das circunstâncias fáticas – prática de 4 (quatro) infrações devidamente comprovadas ocorridas no início do ano de 2008 (portanto em data distante do pleito eleitoral) consistentes no fornecimento de material de construção e de mão-de-obra para a reforma de imóveis de particulares mediante utilização de recursos do município da Laranjeiras/SE – não permite a formação de um juízo positivo quanto à potencialidade lesiva para fins de caracterização da prática de abuso de poder econômico punível com a cassação dos mandatos dos recorridos”(5).
Com advento da lei da ficha limpa, acrescentou-se o inciso XVI, no art. 22, da LC 64/90, dispondo que para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição. Sem dúvida uma inovação que demonstra preocupação com a moralização das eleições. Entretanto, é bom ressaltar que o legislador, no mesmo dispositivo, estabeleceu que os tribunais, por outro lado, deverão levar em consideração a “gravidade das circunstâncias” que caracterizam o ato. Assim, certamente a defesa dos candidatos passará a alegar que o ato não era grave, forçando a jurisprudência a estabelecer critérios para qualificar uma conduta como grave ou não-grave.
Além disso, o art. 15 da LC 64 passou a estabelecer que publicada a decisão proferida por órgão colegiado que declarar a inelegibilidade do candidato, ser-lhe-á negado registro, ou cancelado, se já tiver sido feito, ou declarado nulo o diploma, se já expedido. Ou seja, ao contrário do que ocorria até então, passou a restar dispensado o trânsito em julgado, bastando decisão proferida por tribunal para a cassação do candidato e imposição da sanção de inelegibilidade. Entretanto, a lei resguarda ao candidato a possibilidade de obtenção de medida cautelar no tribunal superior, a fim de suspender os efeitos da condenação (art 26-C, da LC 64/90).
É certo que a simples alteração legislativa não tornará os candidatos melhores ou piores, mas não há dúvida que as inovações trazidas por esta lei denotam um sentimento geral de descontentamento da população e um reclamo por mudanças no perfil dos administradores públicos.
Notas:
(1) Fonte: http://www.mcce.org.br
(2) TSE, Autos de Consulta n.º 112026. Min. Hamilton Carvalhido, j. 10/06/2010.
(3) STF, ADI n.º 2182/DF, Rel. para o acórdão Min. Cármen Lucia, j. 12/05/2010.
(4) TSE, AgRg-RO 2.355 (42086-65.2009.6.00.0000) Rel. Min. Felix Fischer DJe 15/03/2010, p. 79.
(5) TRESE, RE 3195 Rel. Juiz Arthur Napoleão Teixeira Filho DJe 12/02/2010, p. 5.
Luiz Gustavo de Andrade é advogado sócio do escritório Zornig, Andrade & Advogados. Mestre em Direito e professor do Unicuritiba.