Circulou na Rede Abrat, na internet, divulgada pelo nosso colega Celso F.Rocca (celsorocca@terra.com.br) entrevista da juíza do Trabalho Márcia Mendes, então na Vara do Trabalho de Itapeva, município na divisa Paraná/São Paulo, breve resumo da sentença proferida pela magistrada sobre trabalho de menor com 10 anos de idade, assim como entrevista concedida ao jornal Gazeta. Quer pelo ineditismo da matéria, quer pelas questões jurídicas e sociais suscitadas, vale a pena transcrever o que circulou entre os advogados da rede Abrat. Eis o relato do colega Celso Rocca:
“DECISÃO INÉDITA NA JUSTIÇA DO TRABALHO. Aos 8 anos de idade, Gedeão dos Santos, começou a trabalhar numa plantação de tomates, tendo como função o encaixotamento do produto. O objetivo era juntar dinheiro para comprar uma bicicleta e um vídeogame. Durante dois anos, ele recebeu R$ 0,05 por cada uma das caixas que montava durante o dia. Até que no ano de 2000 um acidente com um prego usado para fechar as caixas tirou-lhe a visão do olho esquerdo, que precisou ser removido. O caso chegou às mãos da juíza substituta Márcia Mendes, em junho de 2001, que, na ocasião, estava designada para a Vara de Itapeva, cidade localizada na divisa de São Paulo com o Paraná. “Era uma ação anômala promovida pelo Ministério Público do Trabalho, que determinava a expedição da Carteira de Trabalho, pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), para um garoto de 10 anos”, lembra a magistrada. Mas o trabalho para menores de 16 anos é inconstitucional e já havia a recusa da Delegacia Regional do Trabalho com base nesse fundamento. O MPT argumentava que, como qualquer trabalhador brasileiro que estivesse naquela situação, o garoto deveria passar a receber o benefício previdenciário. Para receber uma pensão por invalidez e para que o tempo que trabalhou contasse para sua aposentadoria era necessário ter a Carteira de Trabalho, mas se tratava de uma criança. Estava ali uma situação na qual o fato entrava em conflito com o Direito. Era proibido, mas o garoto havia trabalhado. Após algumas noites insones, a juíza determinou que o MTE expedisse a Carteira de Trabalho para ele, a fim de que ele apenas obtivesse o benefício previdenciário. “Ele não poderia deixar de ser reparado pelo ocorrido”, afirma a magistrada que, na mesma decisão, advertiu quanto à proibição do retorno ao trabalho antes do garoto completar 16 anos. Atualmente na 2.ª Vara de Franca, a magistrada mineira, que prestou concurso para a 15.ª Região há dois anos, após ter advogado por 13, reconhece a decisão inédita e polêmica que proferiu. “A discussão é grande, pois o contrato de trabalho com menores é nulo, mas tinha um caso social grave para se tentar reparar. E achei que esta foi a melhor decisão”.
Confira agora a entrevista concedida ao Jornal Gazeta:
JG
– Quando a sra. recebeu o caso, qual foi sua reação?Márcia Mendes
– Tive a impressão de que precisava encontrar uma solução. Não fingi que os problemas processuais não existiam. E isso criou um conflito muito grande. Eu sabia que havia problemas do ponto de vista técnico. Havia dois caminhos para seguir e o mais cômodo seria dizer que a Justiça do Trabalho não tinha competência para julgar tal caso ou que o fato era inconstitucional. Este seria o mais técnico, o mais cômodo e que incitaria menos discussões. Eu teria uma postura tecnicamente correta. Foram duas noites sem dormir, debruçada sobre o processo. Advoguei por 13 anos, tive uma formação técnica muito grande, por isso perdi noites de sono. O processo sempre teve um rigor muito grande para mim. Tive dúvidas sérias, não foi fácil. Pensei, ponderei, conversei com alguns colegas e optei por esta solução.JG
– Quanto tempo demorou para dar a decisão?Márcia Mendes
– Três dias. Não quis demorar muito, até pela urgência que o caso exigia.JG
– Juridicamente sua sentença é questionável, mas reforça a postura do juiz do trabalho como agente social.Márcia Mendes
– O juiz do trabalho não pode ser encarado como mero aplicador da lei. Quando o legislador escreve a lei ele não tem como imaginar todas as situações nas quais pode ser aplicada, então faz uma coisa genérica. Entendo que a função social do juiz é, às vezes, adequar a lei a situações que o legislador não pensou porque não tinha como. Do ponto de vista técnico alguns colegas acham questionável, mas o fato aconteceu. Tinha a limitação da lei, mas o serviço havia sido prestado e o acidente havia ocorrido. Não dava para fechar os olhos e ignorar a situação. A lei protege o menor e proíbe que ele trabalhe, mas nós vamos usar a proteção em seu desfavor. Será que foi isso que o legislador pretendeu? Encontrei uma forma de reparar o dano, justificando longamente na sentença, e o menino está lá recebendo o benefício previdenciário.JG
– “Quando crescer quero ser juiz”, essa foi a declaração do menino em um jornal local. Como a sra. analisa isso?Márcia Mendes
– Senti que prestei uma função importante na vida dele, tão importante que marcou. Acho que ele entendeu o que o Poder Judiciário faz em prol das pessoas. Na simplicidade do seu raciocínio, ele viu que a Justiça do Trabalho é importante. Isso foi muito gratificante. Pode ser que isso até não vingue, mas naquele instante ele não queria ser um montador de caixa de tomate.JG
– A sra. falou que seria mais cômodo repassar o caso para a Justiça Federal por questões de competência. Num momento no qual os juízes lutam pela ampliação da competência da Justiça do Trabalho, não seria até um contraponto tomar esta decisão?Márcia Mendes
– Em primeiro lugar, se remetesse o caso para a Justiça Federal poderia atrasar o processo em até um ano. Quanto à questão da competência tenho uma leitura muito ampliativa do artigo 114 da Constituição Federal. Acho que tudo que tiver relação com o contrato de trabalho deve ser da competência da Justiça do Trabalho. O artigo fala “em outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”, acho que analisar isso de maneira restritiva não parece estar de acordo com o quê o legislador quis fazer. E outra coisa, quem melhor conhece os conflitos do trabalho do que a Justiça do Trabalho. O juiz federal nunca foi a uma plantação de tomate. Além do que, nosso processo é muito rápido. Ainda somos a Justiça mais rápida. Não há porque obrigar o empregado acionar a Justiça Federal, onde um processo demora em média 10/12 anos, e quando envolve ente público a demora é ainda maior. Ou seja, o menino seria maior de idade e a questão ainda não estaria resolvida.JG
– A sra. tirou alguma lição disso tudo?Márcia Mendes
– Teria perdido menos noites de sono (risos). Cito na minha sentença a frase do jurista Eduardo Couture: “Lutarás pelo Direito. Se um dia, porém, encontrares o Direito em conflito com a Justiça. Lute pela Justiça”. Essa é a lição que tiro. As regras do processo não combinam com nossa realidade de trabalho informal, trabalho escravo, trabalho infantil, trabalho subemprego. Enfim, é necessário adaptar isso”.Edésio Passos
é advogado e ex-deputado federal (PT/PR). E-mail: edesiopassos@terra.com.br