Os direitos humanos se transformaram, paradoxalmente, em certos casos, em uma agressividade humanitária. Esta lógica edificou-se sobre uma racionalidade pela qual é possível violar os direitos humanos daqueles que os violam.
O pano de fundo que perpassa este cenário ainda é mais equivocado segundo o qual quem viola os direitos humanos não os possui. Destarte, o violador é transformado em um monstro que se pode descartar sem que haja questionamentos sobre os direitos humanos. Perde, muitas vezes, até mesmo o seu próprio caráter humano.
A história moderna dos direitos humanos é quiçá, a narrativa da inversão destes direitos, a qual transforma a violação dos mesmos em um imperativo categórico da própria ação política.
São vários os exemplos que aqui podem ser citados: a conquista espanhola da América embasada na denúncia de sacrifícios humanos; a conquista da África consubstanciada nas práticas canibalescas. Do mesmo modo a conquista colonial da China e da Índia também foi igualmente marcada por derrames de sangue pretensamente em defesa dos direitos humanos-fundamentais.
É alarmante que no panorama hodierno este modelo racional ainda se faça presente e com manifestações cada vez mais extremadas. Em viagem ao passado recente refiro-me ao início da década de 1990, quando o Kosovo e a Sérvia foram as paisagens escolhidas para receber a “intervenção humanitária” promovida pela Otan em nome das violações de direitos que a Sérvia cometeu frente aos kosovares.
Mais recém ainda, a guerra do Afeganistão ressaltou a ambivalência dos direitos humanos. Todo um país foi destruído em nome de assegurar a vigência dos direitos fundamentais. Assim, os Estados Unidos puseram em marcha uma grande fábrica de mortes, levando a cabo uma ação de aniquilamento onde a maioria dos mortos era civil.
O que se destruiu foi à base de vida da população, aniquilou-se a já parca e incipiente infraestrutura econômica nacional. O ataque não se dirigiu apenas contra as vidas humanas diretamente, mas também contra os meios de vida de um país inteiro.
Ainda presenciamos, cotidianamente, as repercussões deste raciocínio quando, nos meios de comunicação, as notícias apontam para a continuidade da guerra no Iraque. Desta vez, a ofensiva americana fez frente ao ditador iraquiano Saddam Hussein em nome da segurança mundial. E, assim, contra deliberações da débil Organização das Nações Unidas, tropas invadiram o Iraque para salvar a todos das armas de destruição em massa que ali havia, mas, que até hoje, ninguém encontrou.
A ideologia que guiou – e guia – essa inversão do mundo, como resultado da qual as vítimas são culpados, e os vitimadores inocentes, se autoproclamam juízes do mundo, tem suas raízes fincadas no pensamento clássico de John Locke.
O autor clássico mais importante defensor desse pensamento foi, quem em um momento crucial de dominação colonial elaborou essa interpretação inversa dos direitos humanos, a qual está presente até hoje na política imperialista que o impulsionou também a guerra do Afeganistão. E que agora impulsiona esta ofensiva militar no Iraque.
Sem embargo, nossa sociedade atual, através da estratégia globalizante voltou a produzir uma nova totalização baseada nesta ideologia descoberta e desenvolvida primeiramente por Locke.
Até então, o domínio e a expansão colonialistas eram justificados pelo direito divino dos reis. Entretanto, depois das revoluções burguesas este argumento não mais poderia prosperar enquanto justificativa válida deste processo. Neste influxo, foi Locke que ofereceu à sociedade burguesa da época a saída desta situação.
John Locke afirma que “todos os homens são iguais por natureza”. Para este autor as intervenções coloniais violentas não violavam os direitos humanos, mas, ao contrário, representavam sua fiel aplicação. Para o autor inglês se trata de um “estado de igualdade perfeita” no qual qualquer ser humano, por também ser dotado de direitos, tem direito de castigar e punir os violadores destes, sendo assim o aplicador da “lei natural”.
É nesta toada que afirma Franz Hinkelamert: “Sin embargo, cuando Locke habla de este estado de naturaleza, no está hablando de ningún pasado, sino del presente.” Arremata o autor espanhol:
De esta manera, Locke formula el prototipo clásico de la inversión de los derechos humanos, que sigue siendo hasta hoy el marco categorial bajo el cual el imperio liberal ve su imposición del poder a todo el mundo. Hasta hoy, en efecto, todas las guerras hechas por el imperio son consideradas guerras justas. Guerras tan justas, que el adversario no puede reclamar ningún derecho humano. No hay derechos humanos del adversario, y quien los reclama, también se ha colocado en estado de guerra contra el género humano.
Neste diapasão, seja na Guerra do Vietnã, seja contra os sandinistas na Nicarágua, em Cuba, ou atualmente, no Afeganistão e, ainda mais recentemente, no Iraque, a lógica que subjaz todos estes processos é a lógica lockeana da inversão dos direitos humanos. Assim, em nome destes aniquila-se os direitos humanos de todos aqueles que exercem resistência à sociedade burguesa e sua lógica de funcionamento.
O paradoxo consiste na diferença em que o autor inglês vê essa totalização somente como um projeto teórico, porém, a sociedade mundial contemporânea a inverteu, entrevendo, neste modelo ideológico-racional, os meios para se impor definitivamente.
Neste momento nota-se uma retomada pela temática dos direitos humanos, assim do ponto de vista teórico como da atividade prática. A reflexão jurídica está, lentamente, se intensificando e os doutrinadores vêm dedicando mais atenção sobre o assunto.
A legislação brasileira também tem se renovado. Exemplo maior disso é a Constituição Federal de 1988, que marcou a virada democrática no país colocando o princípio da dignidade da pessoa humano enquanto fundamento da República.
No campo da prática administrativa e jurídica, todavia, o progresso tem sido menor. É bem verdade que o Governo criou a Secretaria Nacional de Direitos Humanos que, por sua vez, atua de forma ineficiente e distorcida. O Supremo Tribunal Federal ainda tem sido muito reticente na apreciação de casos relacionados à temática e, muitas vezes, opõe-se a Tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Contudo, estas medidas ainda apresentam-se ineficazes e reduzidas frente à defesa intransigente dos direitos humanos-fundamentais e da dignidade da pessoa humana.
Pode-se falar ainda que a esperança de um mundo melhor do que este se encontra em flagrante contraste com a multidão dos homens sem direitos, que constituem mais de dois terços da humanidade. Afinal, a ordem econômica mundial que favorece os países ricos é responsável pela fome e violência gerada, pela injustiça social, nos países do terceiro mundo. Essa realidade é o desafio para os teóricos humanistas, responsáveis pela divulgação da idéia, pela formação de consciências, único meio eficaz de se vislumbrarem na prática os Direitos Humanos.
A conquista dos Direitos Humanos repousa na possibilidade de fazê-los deixar a abstração para aterrissarem no mundo real, porquanto intrínsecos à realidade das guerras, da educação, da saúde, da exploração de classes, dos presos, do racismo, da pobreza, dos deficientes físicos e mentais, do trabalho infantil, dos idosos entre vários outros.Afinal, reconhecer direitos na Lei sem efetivá-los na prática, no momento de sua violação, é passar do arbítrio à impostura, o que não representa progresso algum.
Enfim, é nesse contexto que se suscita a força de uma sociedade a fim de que se faça valer o consignado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), e, também, na Constituição Federal brasileira, quando no art. 1.º, incisos II e III, eleva à categoria de fundamentos do Estado o direito à cidadania e à dignidade da pessoa humana. Do contrário, a tentação da onipotência do homem sobre a natureza das coisas implicará numa ditadura dos mais fortes, com desprezo por todos esses princípios morais e jurídicos que visam a corrigir os desmandos da primazia da força e da riqueza, sobre os direitos de todos.
Melina Girardi Fachin
é acadêmica da Faculdade de Direito da UFPR.