Num país marcado pela necessidade de prestações estatais positivas e pela crônica crise de representatividade, evidenciada pelos corriqueiros escândalos no Congresso, a estrita separação dos Poderes perde força e a competência do legislador é posta à prova, no que concerne à sua capacidade de suprir a demanda das políticas públicas que são inerentes à sua atuação. Nesse panorama, o Judiciário ganha espaço, tornando-se o principal veículo às mãos do povo para a concretização de direitos sociais fundamentais e implementação de ações governamentais. Mais que isso, a efetivação das normas programáticas deixa de ser mera questão política, submetendo-se também a uma análise jurídica, em que são permitidos a participação e o questionamento de todo cidadão.
Vários sinônimos são encontrados para conceituar esse novo fenômeno vivido no cenário político-jurídico brasileiro, quais sejam judicialização da política, politização da justiça, ativismo judicial, neoconstitucionalismo, entre outros. Em que pese a existência de variações na análise de cada uma dessas terminologias individualmente tomadas, pode-se afirmar que, em essência, o Judiciário abandonou a retrógrada posição de neutralidade perante os demais Poderes[1], permitindo – por meio do Princípio da Supremacia da Constituição e do sistema de freios e contrapesos – uma maior liberdade ao magistrado, o qual deixou de ser tão somente aplicador mecânico da letra da lei e passou a utilizar o processo judicial como instrumento de efetivação das garantias constitucionais.
Com efeito, vive-se hoje um verdadeiro processo de constitucionalização da população[2], em que o espírito constitucional irradia-se a toda a sociedade, que, na consciência de seus direitos, auxilia o tradicional controle de constitucionalidade, a fiscalização e a coordenação da atuação estatal, levando, assim, à instância judicial debates de ordem política.
Em conseqüência, a atividade hermenêutica de juízes e Tribunais ganhou grande amplitude e intensidade, chegando a adentrar, inclusive, à própria esfera de criação do Direito, como teorizam alguns estudiosos. Ademais, questões atinentes à segurança jurídica são levantadas, sendo oportuno destacar que a visão atual (predominante) é de que a previsibilidade das decisões não mais está atrelada à interpretação fria e estrita da lei, mas sim na ponderação de princípios e valores constitucionais aplicáveis ao caso concreto, bem como na certeza de que os direitos fundamentais, em última análise, serão respeitados e garantidos.
Isto exposto, torna-se imprescindível, principalmente no campo dos direitos sociais, o questionamento acerca dos efeitos dessa intensa atuação judicial na concessão do BPC.
O BPC e a relativização de seus requisitos
Inovando em relação às antigas Cartas, a Constituição da República de 1988, em seu artigo 203, elenca de forma expressa os objetivos da Assistência Social no Brasil, prevendo programaticamente, no inciso V, a concessão do BPC, cuja criação tem por fito a prestação de auxílio em pecúnia (no valor de 1 (um) salário mínimo) ao idoso ou portador de deficiência que não possui meios de prover a própria subsistência ou tê-la provida por outrem. Com a regulamentação infraconstitucional advinda em 1993 com a LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social, Lei nº 8742/93 – o benefício de prestação continuada recebeu requisitos objetivos nos artigos 20 e 21, quais sejam ser deficiente (mental ou físico) ou contar com idade igual ou superior a 65 anos e possuir renda per capita familiar inferior a ¼ de salário mínimo.
Quando da concessão administrativa do benefício, pelo INSS, o enquadramento aos requisitos é feito de forma precisamente técnica e aritmética, sendo prontamente indeferido o pedido caso extrapolados os limites legais. Por sua vez, quando tal negativa é levada à análise judicial (sendo da Justiça Federal a competência para o processamento da ação), os parâmetros ganham novos contornos.
As reiteradas situações de dúvida em que se deparam os magistrados residem, sobretudo, no cumprimento dos requisitos deficiência e miserabilidade. Na prática, torna-se bastante árdua a tarefa do juiz em perceber se, no caso em voga, há ou não a configuração de uma deficiência para fins da LOAS, sendo esta traduzida pela incapacidade para os atos da vida independente. Ainda que conte com o auxílio de um laudo médico pericial, algumas peculiaridades hesitam tal avaliação, no sentido de a inaptidão diagnosticada ser suficiente ou não para se atribuir a condição de “deficiente”. Nesse viés, podem ser apontados como exemplos, dentre outros, a existência de incapacidade temporária, parcial, de crianças e de dependentes químicos.
Via de regra, em tais casos, vale-se o magistrado da ponderação sobre a natureza da doença (se estigmatizante ou não), a idade do requerente (se avançada) e o seu grau de instrução (escolaridade). Ou seja, é realizado não propriamente um exame de incapacidade do ponto de vista médico, mas sim de uma incapacidade de fato, percebendo-se se há uma real probabilidade de (re)inserção do individuo no mercado de trabalho, de modo que o exercício do labor lhe traga sustento para si e sua família.
Já com relação ao preenchimento do requisito socioeconômico os debates têm ainda mais perplexidade, por ser o conceito de miserabilidade deveras amplo e subjetivo. Por certo, quando do cálculo da renda familiar for verificado o montante inferior a ¼ per capita, a presunção da miserabilidade será absoluta. Contudo, se os rendimentos ultrapassarem tal limite numérico, outros fatores poderão ser conjugados na avaliação do cumprimento desse requisito. Dessa forma, além de tomar por base as evidências demonstradas pelo Auto de Constatação (fotos, infraestrutura da moradia e composição do grupo familiar), pode o magistrado utilizar-se de interpretações extensivas, tal como a analogia ao artigo 34, §único, do Estatuto do Idoso, para afastar do cômputo toda e qualquer renda (de natureza assistencial ou previdenciária) de valor mínimo recebida por outro membro da família. Ainda, é comum a inclusão ou exclusão de membros do cálculo per capita (como, por exemplo, avós, tios, cunhados, sobrinhos) que, embora vivam sob o mesmo teto que o postulante, de fato, não compartilham das despesas do mesmo, não compondo seu núcleo familiar do ponto de vista econômico.
Aspectos positivos e negativos dessa interferência
Fundamentado, principalmente, no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, o BPC tem por finalidade proporcionar uma condição de vida digna ao idoso e ao deficiente, nos moldes do que preceitua o mínimo existencial. Em atenção ao objetivo fundamental da erradicação da pobreza, observa-se a preocupação do constituinte em retirar estes indivíduos mais vulneráveis de seu estado crítico de miserabilidade e marginalização, garantindo-lhes uma prestação social mínima para que, em suma, sejam supridas suas necessidades vitais básicas e, por conseguinte, gozem do bem-estar de uma vida saudável em sociedade, com igual acesso às oportunidades.
Nada obstante, é preciso ressaltar que este dever estatal possui natureza subsidiária, uma vez que a prestação deverá ocorrer somente quando verificado que, no caso concreto, não há quaisquer familiares (pais, filhos, irmãos, etc.) que possam arcar com o sustento daquele idoso ou deficiente. Ora, não é demais lembrar que a Assistência Social é inteiramente custeada com dinheiro público, não se exigindo de seus beneficiários qualquer espécie de contribuição ao sistema, do que se depreende a inviabilidade prática de o Estado assumir de forma direta a responsabilidade pela subsistência de todo cidadão.
Pois bem, nesse viés, encontra-se grande discussão acerca da constitucionalidade do critério objetivo imposto pela LOAS para aferição da miserabilidade, qual seja possuir renda per capita familiar inferior a ¼ de salário mínimo. Em manifestação na ADI 1232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal categoricamente decidiu pela constitucionalidade de tal requisito, na medida em que este atende aos Princípios da Distributividade e da Seletividade, alicerces da Assistência Social, bem como porque utiliza como parâmetro o salário mínimo, o qual corresponde à concreção monetária do conceito de mínimo existencial.
Ainda, anote-se o cancelamento, no ano de 2006, da Súmula 11 da Turma Nacional de Uniformização de jurisprudências dos Juizados Especiais Federais (TNU), cuja previsão permitia que, em casos em que a renda familiar fosse superior a ¼ per capita, a miserabilidade poderia ser averiguada por outros meios.
Muito embora haja, legalmente, fundamento para ratificar a aplicação dos quesitos da LOAS sem flexibilizações, a jurisprudência atual, em diversos casos, têm preferido a adoção de critérios subjetivos, variando seus argumentos de acordo com a análise das peculiaridades do caso concreto. É nesse sentido que, nos encontros e fóruns de magistrados (Foreprev, Fonajef, entre outros), têm se proliferado entendimentos e enunciados que primam pelo atendimento, em primeiro plano, aos direitos e princípios constitucionais, relativizando os limites impostos pela legislação infra.
No entanto, é necessário frisar que as concessões de benefícios não podem ocorrer de maneira desenfreada e a mercê bom senso na definição de miserabilidade e justiça de cada julgador, pois, como já dito, a fonte de custeio é integralmente estatal e, por notório, os recursos públicos são finitos e bastante escassos.
Sob um enfoque maior, a nível de direitos humanos, certamente o ativismo judicial nas concessões do BPC revela uma verdadeira evolução na história da Assistência Social no Brasil e, conseqüentemente, reflete um novo modo social e humanitário de agir e pensar o direito. Todavia, deve-se ter em mente que o paternalismo judicial não é a maneira mais racional e razoável de eliminar a pobreza num país com tão arraigada desigualdade social. Logo, da mesma forma que o legislador, ao projetar e editar a lei, realiza estudos de impacto orçamentário e precedência de custeio, tem de o juiz preocupar-se com esses fatores de exeqüibilidade e da reserva do possível do Estado, respeitando as diretrizes basilares da Administração Pública, com ênfase para aquela aduzida no artigo 195, § 5º, da CF/88, que veda a criação, majoração ou extensão de benefícios e serviços sem a correspondente fonte de custeio total.
É de se deixar claro que, em verdade, não há uma lacuna na lei a ser preenchida, mas tão apenas uma divergência de pensamentos entre legislador e magistrado acerca da delimitação dos requisitos do BPC. Em vista disso, o que se propõe é que, de fato, haja harmonia e confluência entre Legislativo, Judiciário e Executivo, de tal modo que as concessões judiciais de benefícios respeitem os limites arbitrados pelo legislador, bem como estejam em equilíbrio com os recursos disponíveis pelo Estado. Parte-se, pois, da idéia de que cada prestação de cunho assistencial, seja de origem constitucional (como o BPC) ou de plano de governo, possui características próprias e é criada para um certo e determinado público-alvo. Assim, ao se alargar descomedida e demasiadamente o grupo de destinatários desses benefícios, sem atentar-se para a correspondente previsão orçamentária, pode-se comprometer a viabilidade executiva de tal prestação a toda uma coletividade, incluindo-se aqueles que efetivamente enquadrar-se-iam nos ditames legais.
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[1] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. O Judiciário frente à divisão dos poderes: um princípio em decadência? Revista USP, São Paulo, nº 21, mar.-mai.1994
[2] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.oab.org.br/oabeditora>. Acesso em: 14 de janeiro de 2011
O presente texto representa a síntese do trabalho de conclusão de curso da acadêmica Ana Martha Gonçalves, no curso de Direito do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) sob a orientação do Prof. MSc. Luiz Gustavo de Andrade.