A intenção e o agente ímprobo

 

A aplicação da Lei de Improbidade Administrativa (LIA) tem sido alvo de questionamento desde a sua edição, em meados de 1992, quando, então, as condutas causadoras de enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário, ou, ainda, contrárias aos princípios da Administração Pública passaram a ser castigadas com punições gravíssimas, tais como: i) perda da função pública; ii) suspensão dos direitos políticos por até 10 anos; iii) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios por até 10 anos; iv) pagamento de multa civil de até 100 vezes o valor da remuneração percebida pelo agente; v) pagamento de multa civil de até 3 vezes o valor do acréscimo patrimonial; vi) perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; e vii) ressarcimento integral do dano.

Ainda que esse diploma legal tenha ingressado no ordenamento jurídico com a intenção de consagrar entre os agentes públicos o princípio da moralidade administrativa – algo tão desejado pela sociedade -, o fato é que as disposições ali contidas acabaram não raras vezes sendo banalizadas, pelo inadequado manejo das ações de responsabilidade pela prática de ato de improbidade administrativa. O que se vê  é um sem número de ações de responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa ajuizadas em razão de condutas que, apesar de contrárias à lei, não foram praticados com essa intenção.

Esse cenário se consolidou em vista da deficiente redação da LIA, que se cala quanto à necessidade de se caracterizar a intenção do agente público para que haja punição, exceção feita aos atos que causam prejuízo ao erário, para os quais foram expressamente previstas as modalidades culposa (com negligência, imperícia ou imprudência) e dolosa (com intenção). Ressalva-se, contudo, que, mesmo nessa hipótese, a melhor interpretação da lei impõe que as penalidades sejam aplicadas somente ao administrador desonesto, de forma que deve ser analisada e efetiva intenção (dolo) do agente público, ainda que o prejuízo ao erário venha a ser causado de forma culposa.

De qualquer forma, a omissão legislativa criou enorme impasse e o que se constatou foi o ajuizamento de ações de improbidade administrativa contra atos praticados simplesmente em desconformidade com a lei (como se ilegalidade fosse sinônimo de improbidade). Com isso a LIA deixou de ser aplicada para a finalidade precípua para a qual foi instituída, qual seja, a de punir o agente ímprobo,  na medida em que o administrador que infringe a lei por inabilidade, passou a ser confundido e até mesmo equiparado àquele desleal e imoral.

Note-se que não bastasse a severidade das penalidades impostas pela LIA, o simples fato de figurar como parte em uma demanda dessa natureza, como se sabe, causa inquestionáveis máculas à imagem do agente público.

A fim de solucionar esta questão, a doutrina e a jurisprudência majoritária firmaram entendimento no sentido de ser imprescindível a caracterização da intenção dolosa do agente público para a aplicação da LIA, salvo no que toca aos atos causadores de prejuízo ao erário, para os quais basta a demonstração de culpa.

De fato, a intenção da lei, e até mesmo da Constituição Federal, ao prever a punição das condutas ímprobas é a de reprimir os atos praticados pelo administrador com a vontade dirigida de obter vantagem pessoal para si ou para terceiros. Pretendeu a lei, assim, desestimular a atuação imoral com feições de corrupção.

Mostra-se absolutamente desproporcional e desarrazoada, via de conseqüência, a aplicação das severas penalidades previstas na LIA ao agente público responsável pelo ato que, ainda que contrário à lei, é praticado em função de sua inabilidade e inexperiência no exercício da função administrativa. 

Para aplicação das penalidades previstas na LIA, assim, a ilegalidade deve estar acompanhada da intenção do agente em obter enriquecimento ilícito ou atentar contra os princípios da Administração Pública, de forma que a conduta ímproba seja caracterizada, valendo lembrar que, se de um lado a boa-fé se presume, de outro, a má-fé deve ser inequivocamente demonstrada.

Esse posicionamento, que até então não era pacífico, foi recentemente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos autos do ERESP 479.812. À luz dos princípios da tipicidade e da culpabilidade, a referida Corte entendeu ser impossível a condenação do agente público por ato culposo sem que haja expressa disposição legal nesse sentido.

Agora não há mais dúvida: a comprovação da má-fé é elemento crucial para a punição do agente público responsável pela prática de ato que causa enriquecimento ilícito ou atente contra os princípios da Administração Pública.

A solidificação desse entendimento pelo STJ é relevante para o adequado tratamento dos atos praticados em desacordo com a lei. É claro que o administrador público deve agir, sem exceção, em estrito atendimento aos limites e ditames da lei, e o ato praticado em desconformidade com o ordenamento jurídico deve ser reprimido. Mas, para isso, há instrumentos próprios e penalidades especificamente previstas na legislação respectiva, que devem ser aplicados de forma criteriosa.

Paola Szanto Mendes dos Santos, advogada especialista em Direito Administrativo, sócia da Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados (www.dgcgt.com.br)

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo