A inimputabilidade penal na CF de 1988

Introdução

Tendo em conta a ocorrência de inúmeros delitos, não raras vezes de caráter hediondo, praticados por adolescentes com idade entre 13 e 17 anos, a sociedade insistentemente clama por mudanças no ordenamento jurídico, principalmente no que concerne à diminuição da “maioridade penal’. Entretanto, contrariamente ao que muitos pensam, a questão da inimputabilidade penal atinente aos menores não se resolve num “piscar de olhos”, ou na mesma velocidade em que as infrações são cometidas diuturnamente. Conquanto a voz do povo seja um fator favorável a mudanças – sobretudo num Estado Democrático de Direito – para que estas ocorram efetivamente é necessário muito mais do que um comezinho “toque” popular. Além da insistência dos populares, é preciso que os nossos representantes congressistas não mensurem esforços dentro de um devido processo legislativo. Observe-se, no entanto, que não obstante somados os anseios populares com o empenho dos legisladores, talvez isso não seja suficiente para concretas alterações, visto que o próprio ordenamento constitucional vigente estabelece entraves consideráveis ao assunto. Ademais, não se pode olvidar que a questão da ressocialização no sistema penitenciário brasileiro é bastante controversa, o que obriga o Estado ou a própria sociedade, antes de tomar qualquer medida efetiva, pensar e repensar muito acerca da redução da “maioridade penal” de 18 para 16 anos.

Inimputabilidade Penal

Preliminarmente, é necessária a obtenção da definição etimológica do verbo ‘imputar’. Segundo os lexicógrafos, imputar significa “atribuir a alguém a responsabilidade por algo; por alguma coisa ou fato”. Por exemplo, o representante do Ministério Público, no exercício de suas atribuições, ao ofertar uma denúncia-crime, imputa ao agente o cometimento de um determinado delito, classificando-o na competente peça acusatória.
Em outras palavras, entendendo haver indícios de autoria e materialidade, com fulcro no material probatório até então obtido, o agente ministerial (federal ou estadual) denuncia o indivíduo infrator, atribuindo a ele a responsabilidade por um determinado fato delituoso, cabendo ao denunciado apresentar sua defesa dentro de um devido processo legal. Por oportuno, vale lembrar que o acusado se defende do fato criminoso que lhe é imputado e não da tipificação legal da conduta fixada pelo “Parquet” na peça acusatória.

Pois bem, assentado o significado do verbo “imputar”, é necessário conceituar o instituto da “imputabilidade penal”, do ponto vista estritamente jurídico. É cediço que a imputabilidade criminal denota a capacidade do agente de responder pela infração que cometera; é a capacidade de a pessoa compreender que o fato é ilícito e de agir em conformidade com esse entendimento. Tal imputabilidade é pressuposto de culpabilidade; logo, declarada a “inimputabilidade”, a culpabilidade é excluída – muito embora o crime persista. Isto é, o delito persiste, porém não se aplica pena ao agente em razão da ausência de reprovabilidade da conduta. Em outras palavras, por falta da imputabilidade, que é pressuposto de culpabilidade, o autor do delito não é apenado. Segundo estabelece o art. 27 do Código Penal brasileiro, “os menores de dezoito anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial”.

Nesse mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 228, assegura a condição de inimputável ao menor de 18 anos, devendo este submeter-se às regras da legislação especial (estatutária). Registre-se, embora penalmente inimputáveis, os menores de 18 anos ficam sujeitos às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 104), que estabelece medidas sócio-educativas, por exemplo, ao adolescente que praticara ato infracional, ou seja, conduta descrita como crime ou contravenção penal.

É importante notar que a maioridade penal é alcançada a partir do primeiro minuto do dia em que o indivíduo completa os 18 (dezoito) anos de idade, independentemente da hora do nascimento. Enquanto não completados os 18 anos de vida, o agente é inimputável penalmente por determinação legal e constitucional.

Atribuída a autoria de um ato infracional ao adolescente, este será encaminhado pela autoridade policial ao representante do Ministério Público, que poderá propor, conforme o caso, a instauração de procedimento para a aplicação das medidas sócio-educativas que se afigurarem as mais adequadas.

Em suma, ainda que inimputáveis penalmente, no Brasil, os adolescentes infratores submeter-se-ão aos ditames da lei (legislação estatutária – ECA), que sanciona condutas consideradas criminosas ou contravencionais.

A “maioridade penal” em outros Estados soberanos

Na América do Sul, apenas o Brasil, a Colômbia e o Peru adotam a responsabilidade penal aos 18 (dezoito) anos de idade. A Argentina, por exemplo, fixa a maioridade penal em 16 (dezesseis) anos, enquanto Chile e Paraguai adotam a idade mínima de 14 (quatorze) anos para a responsabilização criminal.

Em alguns países europeus, como Alemanha e Itália, jovens com 14 (catorze) anos completos já podem ser responsabilizados por crimes que eventualmente venham a cometer. Na Inglaterra, cada fato é considerado a partir de suas próprias peculiaridades, independentemente da idade do infrator.

Suécia, Noruega e Dinamarca, que compõem a região nórdica, assim como a Finlândia, estabelecem a maioridade penal em 15 (quinze) anos. Em Portugal, no entanto, a responsabilização criminal é fixada a partir dos 16 (dezesseis) anos.
No Japão e na Índia, o direito interno de cada país fixa a maioridade penal em 14 (quatorze) e 7 (sete) anos, respectivamente. Nos Estados Unidos da América, diferentemente, a maioridade criminal é determinada por estados (50, no total), sendo a mínima de 06 (seis) anos.

Constituição “Cidadã” e seu art. 228

Se há previsão expressa na Constituição pátria acerca da inimputabilidade penal em decorrência da menoridade (art. 228), o instrumento apropriado para a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, seria uma emenda constitucional, fruto do poder constituinte derivado reformador, que é instituído e limitado pelo poder constituinte originário.

Observe-se, a Carta Política de 88 é classificada como uma constituição rígida, rigidez que lhe assegura maior estabilidade – sem significar imutabilidade. Para sua alteração exige-se um processo legislativo mais laborioso e solene que o processo de modificação das normas subconstitucionais ou infraconstitucionais.

À exceção da Carta de 1824, outorgada por D. Pedro I, todas as demais constituições brasileiras foram rígidas, inclusive a atual.

Essa rigidez está prevista no § 2.º do art. 60 da CF/88, que estabelece que a proposta de emenda seja Congresso Nacional, em dois turnos, discutida e votada em cada Casa do considerando-se aprovada se auferir, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (exige-se, pois, maioria qualificada).

Não obstante a possibilidade de emenda, é concebido que a Lei das Leis não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Aqui, o legislador constituinte originário criou um limite denominado “circunstancial” ao poder constituinte derivado reformador, ou seja, em determinados períodos de instabilidade institucional, de crise constitucional no País, é inadmissível emendas (mudanças) à Constituição Federal (§ 1.º do art. 60 da CF/88).
Note-se, outros limites também foram criados pelo constituinte originário, dentre eles, os denominados “limites materiais”. Tais limitações dizem respeito às famosas “cláusulas pétreas”, as quais foram enumeradas no parágrafo 4.º do art. 60 da CF/88.

Consoante estabelece o dispositivo supra (CF, art. 60, § 4.º), não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes Constituídos; e os direitos e garantias individuais.

Desse modo, por ordem constitucional, é inadmissível proposta de emenda tendente a abolir as famigeradas cláusulas pétreas cerne fixo do texto magno.

Nesse ponto, resta saber se eventual emenda constitucional que reduzisse, por exemplo, de 18 para 16 anos a maioridade penal, afrontaria a “cláusula pétrea” concernente aos “direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4.º, IV, da CF/88).

Cláusulas pétreas e a inimputabilidade penal

Como já observado, ao arrolar as cláusulas pétreas o legislador constituinte originário assentou que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-las (art. 60, § 4º, CF/88). Quis, com isso, deixar claro que uma proposta de emenda voltada a abolir “cláusula pétrea” não deve, nem mesmo, ser objeto de deliberação no Congresso Nacional.

A simples submissão, a um processo legislativo, de proposta de emenda tendente a abolir as denominadas ‘cláusulas pétreas’, já afrontaria a Carta Magna, consubstanciando uma inconstitucionalidade.

Enfim, se determinada proposta de emenda visa a suprimir ou enfraquecer as matérias reputadas pela doutrina como “cláusulas pétreas”, não deve sequer ser objeto de deliberação pelos congressistas. Entretanto, uma vez submetida ao processo legislativo propriamente dito, a referida proposta não deverá ser aprovada pelos membros das respectivas Casas Legislativas do Congresso Nacional, pois padecerá de inconstitucionalidade.

À vista disso, indaga-se: tendo em conta que a “menoridade”, como hipótese de inimputabilidade contemplada no Código Penal, foi erigida à condição de garantia constitucional (CF, art. 228), eventual emenda que reduzisse de 18 para 16 anos a maioridade penal, estaria enfraquecendo uma das matérias expressas no § 4º do art. 60 da atual Carta Magna (“cláusula pétrea”)? Ou ainda, um texto de emenda visando à diminuição da maioridade penal afrontaria a garantia fundamental do direito à inimputabilidade?

Enfrentando a questão, primeiramente é mister salientar que a matéria assentada no art. 60, § 4º, inc. IV, da CF/88, abrange vários direitos e garantias constitucionais de caráter individual dispersos no texto magno. Em outras palavras, a proteção relativa às cláusulas pétreas não atinge exclusivamente os direitos e garantias enumerados no art. 5.º e incisos da Constituição Federal; alcança, também, conforme entendimento da Corte Suprema (STF), outros dispositivos constitucionais espalhados pelo texto, inclusive a garantia de inimputabilidade penal fixada no precitado art. 228.

Por oportuno, vejamos o que prescreve o art. 228 da Constituição Federal de 88:

“São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial”.

Vê-se, pois, que o legislador constituinte originário deixou evidente que os menores de 18 (dezoito) anos não podem ser apenados, visto que penalmente inimputáveis. Mesmo que venham a cometer crimes e contravenções penais (“atos infracionais”, segundo a legislação estatutária), a Constituição Federal assegurou-lhes o direito à não-responsabilização criminal em razão de não terem personalidade já formada, tampouco devida maturidade de caráter.

Em resumo, temos que o art. 228 da Carta Política diz respeito a uma garantia de não-aplicação do direito penal aos menores infratores.

Em se reduzindo a maioridade penal de 18 para 16 anos, por meio de emenda constitucional, sem pálio de dúvida essa questão atingirá direitos e garantias individuais dos adolescentes, os quais, até então, são inimputáveis penalmente e protegidos pela legislação estatutária (ECA), que fixa ser “dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” (art. 18).
Com a referida redução, inegavelmente o direito individual de “liberdade” dos menores será afrontado e enfraquecido, o que fere frontalmente o disposto no art. 60, º§ 4.º, inc. IV, da Constituição Federal de 88.

Em suma, qualquer emenda tendente a abolir do texto magno a garantia de inimputabilidade penal atribuída aos menores de 18 anos, desrespeitará o trabalho do poder constituinte originário, dando azo à declaração de inconstitucionalidade da referida espécie normativa.

Por fim, é necessário que nos atentemos ao art. 227 da CF/88, o qual estabelece que é “(…) dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

À vista disso, mais uma razão para que repensemos melhor a respeito do assunto. De mais a mais, o sistema penitenciário brasileiro não está apto a ressocializar os menores infratores. Eventual aprisionamento redundaria num ato deletério, pois ao invés de afastar os infratores dos males do mundo, submetê-los-ia à discriminação, à exploração, à violência, à crueldade e à opressão, condições dignas de reprovação pela norma constitucional (art. 227) e pela legislação estatutária (ECA) que os protege há mais de 18 (dezoito) anos.

Registre-se, não se está, aqui, avalizando a conduta desviada dos menores adolescentes. Longe disso! Evidentemente, devem eles ser prontamente punidos pelos atos criminosos que vierem a cometer. Busca-se, apenas, esclarecer que o instrumento competente para a redução da maioridade penal é uma emenda constitucional e não uma simples lei ordinária, como muitos pensam. Pergunto novamente: uma eventual emenda constitucional violaria a cláusula pétrea do direito e garantia individuais (art. 60, § 4.º, IV)? Eventual PEC seria constitucional?

E ainda, uma vez reduzida a “maioridade penal”, solucionaríamos o problema da criminalidade no País? É óbvio que não! Há objetivos preliminares mais importantes a serem perseguidos pela República Federativa do Brasil!

Caro leitor, você e eu sabemos que o trabalho dignifica o homem. Sem trabalho não há como erradicar a pobreza e a marginalização, tampouco reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3.º, III, CF/88).

Logicamente, o Estado não é obrigado a ofertar emprego a todos, mas é necessário que políticas sociais valorizem o trabalho e o trabalhador. O povo precisa trabalhar; carece de oportunidade, cabendo ao Estado fomentar o emprego e inibir políticas que levem ao desemprego e à conseqüente segregação social.

Com trabalho (direito social) e profissionalização, não se compromete em demasia a saúde, o lazer, a moradia, a cultura e a educação. Com educação, certamente haverá mais respeito à dignidade da pessoa humana e, sem dúvida alguma, nós, governantes e governados, perceberemos uma considerável diminuição da criminalidade no País.

Se na teoria tudo isso é tão bonito, por que não admirar a beleza na prática?

Pensemos nisso… Lugar de criança é na escola! O trabalhador adolescente também tem direito aos bancos escolares. Sem escola, não há educação; sem educação, não há respeito ao próximo; sem respeito não se vive, sobrevive.
Vencida essa fase educacional sem que os resultados sejam satisfatórios, daí sim pensemos no recrudescimento da legislação criminal e, concomitantemente, no melhoramento do sistema carcerário brasileiro, a fim de que os adolescentes infratores possam ser, de fato, ressocializados, e não escolarizados pelo crime.

É isso…

Nourmirio Bittencourt Tesseroli Filho é advogado, especialista em Direito Processual Civil. Professor de Direito Constitucional Positivo e de Direitos Fundamentais da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da pós-graduação e de cursos preparatórios para concursos públicos e OAB. n.tesseroli@pucpr.br

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