O Estado de Direito funda-se em três pressupostos básicos: a segurança jurídica, a justiça e o bem comum.
O ordenamento jurídico é apenas uma forma de colimar esses objetivos. Pode-se constatar que seu ideal repousa na busca incessante da justiça, seja mediante a norma in abstrato, seja na sua efetividade in concreto, pelos meios de solução judicial e extrajudicial de litígios.
Entretanto, percebe-se que, pelo influxo positivista que estruturou o ensino jurídico no Brasil, prima-se pelo formalismo, olvida-se a essência; prepondera a legalidade, sepulta-se a segurança jurídica. Por conseqüência do extremado apego à norma, como instrumento da legalidade, a verdade é que não se atinge a justiça nem o bem comum. Por isso que não se pode compulsivamente venerar a estampa da harmonia da norma, quando subjaz o cancro da iniqüidade.
Imagine-se a hipótese de que a informação computadorizada por um Tribunal transmita uma determinada tramitação processual, quando, entretanto, o Diário Oficial publica uma intimação, a qual não é inserida no andamento processual do site. O advogado que acompanha o andamento processual apenas pelo site pode se prejudicar. Ele conjetura que seu processo esteja dentro do padrão da normalidade, fica aguardando o julgamento, quando, então, se surpreende com ato não divulgado no site, o que acaba por prejudicar seu cliente ao perder algum prazo.
Nesse caso, o que deve prevalecer: a informação computadorizada fornecida pelo Tribunal ou a publicidade no Diário Oficial?
Enfocando sob o aspecto de princípio: prepondera o da segurança jurídica, pela confiabilidade do advogado nos serviços públicos de informatização do Tribunal, ou prevalece o princípio da legalidade, uma vez que houve a publicidade no Diário Oficial?
A questão é complexa, mas, quando surgem os conflitos de normas ou de princípios, cabe ao intérprete buscar a conciliação entre as proposições antagônicas, adotando uma ponderação de valores. Como recomenda Luiz Roberto Barroso, ?A ponderação de valores é a técnica pela qual o intérprete procura lidar com valores constitucionais que se encontrem em linha de colisão?.(1)
1. Da predominância do princípio da eficiência sobre o da publicidade
O Estado, quando fornece um serviço público, está assumindo a satisfação deste pelo cidadão, induzindo nele a plena confiança em sua eficiência, tanto que a CF/88, no artigo 37, § 3.º, inc. I estatuiu:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[…]
§ 3.º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:
I – as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;
Não obstante o Estado brasileiro introduzir nova sistemática de administração pública (organizações sociais, agências executivas, contrato de gestão e de parcerias públicas), constatou Rocha França que ?O cidadão brasileiro encontra-se, desde há muito tempo, exausto pela péssima qualidade dos serviços que lhe são prestados pelo Estado?(2).
Assim, é plenamente possível que o servidor encarregado de reproduzir a tramitação processual, inadvertidamente, cometa erros, subtraindo fases, saltando despachos intermediários para dar publicidade aos finais, e, enfim, adotando atitudes contraditórias: na informação computadorizada apresenta uma realidade quando outra se estampa internamente no processo.
Poder-se-ia dizer que, nesse caso, se aplicaria o princípio da publicidade, uma vez que prevaleceria a publicação no Diário Oficial. Data venia, não é este o pensamento, porque deve preponderar o princípio da eficiência (artigo 37, da CF): se há duas vias de publicidade – uma pelo Diário Oficial e outra pela informação computadorizada – em ambas deve impregnar a eficiência desses serviços públicos. Se a informação computadorizada é a fotografia da tramitação processual, a publicidade de intimações no Diário Oficial é apenas um ato do encadeamento processual. Evidentemente, este também deve estar retratado no andamento da informação computadorizada, sob pena de esta ficar uma caricatura da realidade procedimental.
Aqui, portanto, prevalecerá o princípio da eficiência sobre o da publicidade, porque esta é um meio para atingir aquela. E quando a lei quer um meio dá um fim, por isso que a parte não pode sofrer uma sanção pela ineficiência do serviço público.
2. Da inadmissibilidade de comportamento contraditório
Ademais, não se pode esquecer que os princípios gerais de direito colmatam as eventuais lacunas existentes no direito brasileiro. No caso em tela, aplica-se o princípio venire contra factum proprium, ante a inadmissibilidade de um comportamento contraditório por parte do Poder Judiciário que, mediante dois meios de publicidade dos atos processuais, apresenta os divergentes, ou seja, para o mesmo rosto, múltiplas faces.
Por oportuna, a lição magistral de Arnaldo Sussekind e Délio Maranhão(3):
Há no direito, um princípio que não pode nem deve ser esquecido dada a sua profunda significação moral. Escreve, a propósito, Egon Felix Gottschalk:
?À exceptio doli generalis corresponde o princípio da boa-fé. Daí se deduz uma outra regra, estabelecida pela ciência e pela jurisprudência: a proibição de venire contra factum proprium, isto é, a inadmissibilidade de um processo contraditório?.
E, citando Lemann:
?Ninguém pode exercer um direito em contradição do seu procedimento anterior?.
Franz Wieacher(4), por seu turno, ensina:
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM – Con base en algunos textos romanos y en la elaboración llevada a cabo sobre ellos por la doctrina posterior se viene repitiendo que nadie puede venir contra sus propios actos. Con ello se quiere decir que el acto de ejercicio de un derecho subjetido e de una faculdad es inadimisible cuando con él la persona se ponde en contradicción con el sentido que objetivamente y de acuerdo com la buena fe habia que dar a su conducta anterior. La regla veda una pretensión incompatible o contradictoria con la conducta anterior.
Essa boa-fé do cidadão na eficiência do serviço público de informatização também lhe confere a proteção da confiança à parte que foi surpreendida por um ato processual que descarrilou.
3. Da aplicação do princípio da segurança jurídica
3.1 Da predominância do princípio da segurança jurídica sobre o princípio da legalidade
O que deve prevalecer: a intimação feita pelo Diário Oficial, consoante o princípio da legalidade, ou os atos registrados na informação eletrônica, conforme o princípio da segurança?
Almiro do Couto e Silva(5) preleciona que um dos temas mais fascinantes do Direito Público neste século é o crescimento da importância da segurança jurídica, entendido como princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção da confiança. A ele está visceralmente ligada a exigência de maior estabilidade das situações jurídicas, mesmo daquelas que na origem apresentam vícios de ilegalidade. A segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de Direito.
A propósito Canotilho(6) lembra que:
Partindo da idéia de que o homem necessita de uma certa segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida, desde cedo se considerou como elementos constitutivos do estado de direito os dois princípios seguintes: o principio da segurança jurídica e o principio da confiança do cidadão.
A função-certeza da exigência de segurança estampada na informação computadorizada, a torna plenamente confiável ao advogado que acompanha pari passu o andamento processual, pois, como relembra Tércio Sampaio Ferraz Jr ?Cria condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seus próprios atos e dos atos dos outros?(7).
Assim, mesmo que se queira pautar pelo princípio da legalidade ante a publicidade de intimações via Diário Oficial, prevalecerá o princípio da segurança jurídica, consubstanciada na forma de registro de acompanhamento informatizado, porque também é oficial e pública. Ratifica essa assertiva a recente Lei n.º 11.341, de 07 de agosto de 2006, que, alterando o artigo 541 do CPC, permitiu que as partes comprovassem o dissídio jurisprudencial fazendo a prova da divergência pela ?citação do repositório de jurisprudência, oficial ou credenciado, inclusive em mídia eletrônica, em que tiver sido publicada a decisão divergente, ou ainda pela reprodução de julgado disponível na internet, com indicação da respectiva fonte…?
Tecnicamente, não é questão de a intimação pelo Diário Oficial prevalecer sobre a informação eletrônica, mas ambas devem ser dotadas de perfeição, funcionalidade, eficácia e certeza; são dois pés caminhando em direção às partes. Se uma falha, ficando capenga, evidentemente estará comprometendo o organismo judiciário de intimações e de andamento processual, deverá ser imediatamente corrigida, sem que nenhuma sanção processual, mediante o instituto de preclusão(8) temporal, lógica ou consumativa, lhe seja aplicada.
Diógenes Gasparini adverte: ?O serviço público deve ser prestado aos usuários com segurança, tendo em vista a natureza do serviço?.(9) Contrario sensu, se a parte sofresse alguma sanção processual, estaria recebendo um estapafúrdio arbítrio: condenada pelos efeitos da ineficiência do serviço público de informatização, quando não agiu com culpa. Erra o Estado, paga o cidadão. Mirabile dictu!
Impende observar que uma das características do princípio da eficiência é a participação e aproximação dos serviços públicos da população, de acordo com o princípio da gestão participativa, como averba Alexandre de Morais(10). Ora, se o Tribunal adota como oficial a informação eletrônica, aproximando a população de tal serviço, no momento em que este falha, mas, para efeitos processuais, é considerado como se tivesse ocorrido a plenitude da eficiência, então a parte prejudicada estaria cambiando pelo nosocômio processual, porque penalizada por causa da ineficiência do referido serviço público.
Convém apenas lembrar que a jurisprudência consagrou que a segurança jurídica é mais importante do que a própria legalidade, com a teoria do fato consumado convalidando nulidades insanáveis pelo transcurso do tempo, e que foi erigida no artigo 54, da Lei n.º 9.784, de 29.01.1999:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1.º No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.
§ 2.º Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, ?A norma, como se pode observar, conjuga os aspectos de tempo e de boa-fé, mas se dirige essencialmente a estabilizar as relações jurídicas pela convalidação de atos administrativos inquinados de vicio de legalidade?.(11)
Como reconhece Hely Lopes Meirelles (12):
no cotejo dos dois subprincípios do Estado de Direito, o da legalidade e o da segurança jurídica, este último prevalece sobre o outro, como imposição de justiça material. Pode-se dizer que é esta solução que tem sido dada em todo mundo, com pequenas modificações de país para país.
No tecnicismo processual, na ânsia de celeridade, muitas vezes o Tribunal tem dado ênfase ao formalismo da legalidade em detrimento da segurança jurídica, quando o interesse público revela que a prevalência é deste princípio e não do outro. Mutila-se o Estado de Direito, porque se arrebenta com a base do sistema normativo, que é a segurança jurídica. Aniquila-se a própria justiça, que diz ser dada com base na legalidade.
Contudo, há que prevalecer o princípio da segurança jurídica, observando-se a situação mais favorável para as partes e seus procuradores.
3.2. Da aplicação do princípio da segurança jurídica e da confiabilidade
Pelo princípio da confiabilidade e pelo da segurança jurídica na administração pública, tem-se que advogados e partes não podem ser prejudicados por inexatidão dos dados fornecidos pela informação computadorizada ou por qualquer outro tipo de serviço prestado por ela.
O próprio Poder Judiciário implantou o serviço oficial e o gerencia diretamente; assim, deve ser considerado responsável pelas informações nele contidas.
Conclusão
A informação computadorizada trouxe facilidade à consulta da tramitação do processo. Todavia, com esse avanço surgem problemas quando não são passadas todas as informações do processo de forma correta, prejudicando os advogados e as partes.
Para solucionar tal questão, devem ser observados os princípios da eficiência, da confiabilidade, bem como o da segurança jurídica, não podendo as partes e seus procuradores serem prejudicados por falha do serviço público.
Desta forma, em tais casos o juiz deve ordenar que haja nova intimação da parte, tanto pelo Diário Oficial quanto pelo sistema de registro eletrônico do processo, para que a parte tenha oportunidade de suprir a falha no registro da tramitação processual, reconhecendo-se a justa causa impeditiva da preclusão.
Notas
(1) BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, 2.ª ed., p. 68.
(2) FRANÇA, Vladimir Rocha. Eficiência administrativa na Constituição Federal. Revista de Direito administrativo. n.º 220. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, abr/jun 2000, p. 165/177.
(3) SÜSSEKIND, Arnaldo, MARANHÃO, Délio. Direito do trabalho e previdência social Pareceres. V. III. São Paulo: LTr, 1973, p. 60.
(4) WIEACHER, Franz. El principio general de da buena fe. Civitas: Cuadernos Civitas, p. 21.
(5) SILVA, Almiro do Couto e. Princípios da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no Estado de Direito contemporâneo. Revista de Direito Público. N.º 84. Ano XX – 18: São Paulo: RT, out/dez de 1987, p. 46/63.
(6) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, Portugal, 1987, p 309.
(7) FERRAZ JÚNIOR. Tércio Sampaio. Revista de Direito Tributário. n.º 17/18 Ano 05. São Paulo: Editora dos Tribunais, dez/1981, p. 51.
(8) Observa-se que, havendo dualidade de informações e incompatibilidade entre as fases registradas no Diário Oficial e no site oficial do Tribunal, nesse caso haverá justo motivo para realizar o complemento do preparo feito no qüinqüídio, eliminando, assim, a hipótese da deserção, conforme preceituam os artigos 183 e 519 do CPC;
(9) GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 257.
(10) MORAES, Alexandre de. Direito constitucional administrativo. São Paulo: Atlas, 2002, p. 110.
(11) CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Juris, 2006, p. 27.
(12) MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Ed. Malheiros, 2002, p. 95.
Dirceu Galdino Cardin é advogado em Maringá com cursos de especialização em Direito Processual Civil e Direito Civil; Direito Tributário e Direito do Trabalho.
