Muito se tem noticiado acerca de uma nova reforma no Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD e, tendo em vista tal situação, se pretende aqui trazer um ponto a debate: a (in)dispensabilidade de advogado nos processos desportivos disciplinares.
No ano em que a Constituição democrática completa duas décadas de existência, nos parece intrigante qualquer tentativa de negação das garantias individuais, notadamente as do devido processo legal em suas acepções formal e material.
Conquanto clara e inequívoca, a literalidade da lei das leis sofre atentados por meio de inferiores instrumentos cuja validade no ordenamento jurídico pode ser questionada desde o nascedouro.
No entanto, é essa a realidade que move a elaboração das reflexões seguintes que têm por objeto a análise da ?(anti)juridicidade? das disposições contidas no CBJD sobre a defesa nos processos desportivos de competência dos tribunais de justiça desportiva.
Procuremos, de início, extrair a correta intelecção de seus dispositivos pertinentes à defesa, em particular, dos ?defensores?, para depois, fazer a análise da juridicidade da disposição.
O Capítulo VI do Título II, do CBJD se dedica ao tema e assim dispõe:
Art. 29. Qualquer pessoa maior e capaz poderá funcionar como defensor, observados os impedimentos legais.
Art. 30. A declaração formalizada pela parte habilita o defensor a intervir no processo, até o final e em qualquer grau de jurisdição, podendo as entidades de administração do desporto e de prática desportiva credenciar defensores para atuar em seu favor, de seus dirigentes, atletas e outras pessoas que lhes forem subordinadas, salvo quando colidentes os interesses.
Parágrafo único – Ainda que não colidentes os interesses, é lícita a qualquer das pessoas mencionadas neste artigo a nomeação de outro defensor.
Art. 31. O menor de 18 (dezoito) anos que não tiver defensor será defendido por pessoa designada pelo presidente do órgão judicante.
Art. 32. Os presidentes do STJD e do TJD poderão nomear pessoas maiores e capazes para o exercício da função de defensor dativo.
A redação do artigo 29 encerra em si um paradoxo: qualquer pessoa maior e capaz pode ser um defensor, observados os impedimentos legais. Qual é o paradoxo? É que não é admissível o exercício de defensoria por pessoa que não seja advogado regulamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. Conseqüentemente, os requisitos ?maior e capaz? não são legítimos ou suficientes para autorizar o exercício de defesa, já que a advocacia é privativamente exercida por advogados, ex vi do art. 3.º, da Lei 8.906/94. Assim, os impedimentos legais que ressalvariam o exercício da função de defensor nos processos desportivos disciplinares acabam por culminar no óbvio: somente um advogado pode desempenhar o papel de defensor, pois só o bacharel inscrito na OAB tem conhecimento jurídico e habilitação para exercer o munus da defesa.
Precipitadamente dir-se-ia que defensor e advogado têm significados diferentes e indicam exercício de funções também diferentes, o que retiraria a lógica do parágrafo anterior. Tal equívoco é facilmente eliminado ao se ter em mente a própria função do chamado defensor. Defensor é aquele que representa o acusado em processos nas mais variadas instâncias judiciais ou não e se vale do Direito para a defesa.
É inegável que o processo desportivo transcorre, a par dos demais processos administrativos, judiciais ou extrajudiciais em geral, por meio de atos concatenados cuja seqüência vem previamente estabelecida em regulamentos (leis ou atos infralegais) e o fato de estarmos tratando de direito desportivo não afasta a premissa da indispensabilidade do advogado, pois é ele que tem o conhecimento para compreender e interpretar juridicamente o procedimento.
Importante lembrar que a defesa não se resume a desconstituir os ?fatos? ou ?atos? sobre os quais versa o processo. A defesa, por ser inexoravelmente ampla como diz a Constituição, engloba a verificação da qualificação jurídica desses fatos e sua subsunção aos modelos teóricos previstos no regulamento; engloba a necessidade de comprovação por meios lícitos da prática infracional e fiscalização na produção de provas; engloba percuciente análise do contexto fático e as condições de culpabilidade e punibilidade; e diversos outros aspectos. Isso é o que se chama defesa técnica.
E a defesa técnica é igualmente abrangente nas mais variadas esferas. É justamente a amplitude da defesa que orienta os procedimentos em geral, daí a possibilidade/necessidade de oitiva de testemunhas; possibilidade/necessidade de realização de perícia (quando a matéria versar sobre área de conhecimento diversa da do Direito); possibilidade de interposição de recursos, etc. Vale dizer que há diversos papéis a serem desempenhados num processo, sendo cada um deles privativo.
Com o devido respeito, discordamos veementemente das opiniões em sentido contrário, segundo as quais uma pessoa que conheça muito bem as regras de um dado esporte e conheça leigamente o regulamento possa exercer ?melhor? a defesa. Ninguém, em sã consciência, se submeteria a uma cirurgia a não ser que fosse realizada por um médico, por mais que uma outra pessoa possa demonstrar ?conhecer? o corpo humano ou já ter assistido diversas cirurgias similares. Por que então se submeter a um processo cuja defesa não será patrocinada por um advogado?
Feitas essas ponderações, já é possível refutar a idéia de um ?defensor? que não seja advogado. Mas, segundo também nos parece, o próprio CBJD dá conta de corroborar e encerrar polêmicas sobre a questão. É que o Título III trata do processo desportivo e logo nos primeiros dispositivos, a indispensabilidade do advogado exsurge cristalina:
TÍTULO III
DO PROCESSO DESPORTIVO
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 33. O processo desportivo, instrumento pelo qual os órgãos judicantes aplicam o direito desportivo aos casos concretos, será iniciado na forma prevista neste código e será desenvolvido por impulso oficial.
Art. 34. O processo desportivo observará os procedimentos sumário ou especial, regendo-se ambos pelas disposições que lhe são próprias e aplicando-se-lhe, obrigatoriamente, os princípios gerais de direito.
As comezinhas lições de Direito vertem-se no sentido de que o direito não é um mero conjunto de palavras aleatoriamente organizadas em artigos. O direito deve ser interpretado como um todo, sendo a literalidade da lei mero instrumento para o início de sua compreensão.
É assim que se deve entender o que dispõe o artigo 33 que inegavelmente menciona a aplicação do Direito desportivo. Com maior contundência, o artigo 34 dá o tiro de misericórdia na corrente doutrinária que defende a dispensabilidade do advogado, pois advertidamente determina de forma clara e precisa, a aplicação dos princípios gerais de direito.
Para a matéria em exame, podemos citar alguns dos mais importantes princípios gerais de direito: garantia de ampla defesa e contraditório, recorribilidade das decisões, presunção de inocência, devido processo legal, etc. E isso deveria bastar para que fossem cessadas as discussões acerca do tema.
Retomando os aspectos da defesa, já dissemos que a ampla defesa engloba diversos aspectos, incluindo a defesa técnica – essa que só pode ser exercida por advogado pelas razões já expostas.
Portanto, a redação atual do CBJD não possibilita interpretação diversa sobre a necessidade de advogado para o exercício da função de ?defensor?, também pela obrigatória aplicação dos princípios gerais de direito, não obstante seja salutar uma proposta de alteração de seu texto para que tal exigência passe a constar de forma inequívoca a todos os olhos, inclusive leigos.
Nessa oportunidade, é ainda importante mencionar que o Superior Tribunal de Justiça já consolidou entendimento sobre a necessidade da presença de advogado em processos disciplinares e editou a Súmula nº 343:
É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar. (TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 12/9/2007, DJ 21/9/2007 p. 334)
Tal súmula apresenta conteúdo superior ao que aparenta ter. Alguma celeuma foi posta, ao longo desses 20 anos de democracia, acerca do alcance da aplicação dos dispositivos constitucionais sobre ampla defesa, contraditório e devido processo legal, nos processos disciplinares e a dúvida se colocava da seguinte maneira: trata-se de um direito disponível do acusado? Isto é, o acusado poderia dispensar sua defesa técnica, não obstante estivesse pacificado o entendimento de que o órgão processante tinha o dever de conceder tal oportunidade? Hoje, a resposta dada pelo Judiciário é não, pois mais que um direito do acusado, a defesa técnica (aquela que é realizada somente por advogados) é obrigatória e condição de legitimidade e validade do processo disciplinar.
Nos processos penais, isso ?sempre vigorou?, pois, como todos sabem, todos os réus em processos versando sobre delitos penais são, não obstante a vontade do acusado, defendidos por advogados, ainda que dativos, isto é, nomeados pelo Estado e pagos às suas expensas.
A Súmula 343 inaugura, portanto, consolidação de entendimento no sentido da maior amplitude da defesa, tornando a presença do advogado obrigatória.
Em conclusão, entendemos que:
(i) embora desnecessária a reforma do CBJD no que se refere à presença de advogado para o exercício da defesa – eis que não se pode admitir defesa dissociada desses profissionais;
(ii) a alteração do diploma é salutar para:
(ii.i) que se encerrem interpretações equivocadas que desvirtuam o processo desportivo e o transformam em uma contrariedade ao ordenamento jurídico a ser desconstituída na justiça comum ou nas cortes arbitrais
(ii.ii) que os tribunais desportivos não se caracterizem como verdadeiros tribunais de exceção.
José Ricardo Biazzo Simon é advogado de Biazzo Simon Advogados, mestre em Direito Administrativo pela PUCSP, especializando em Direito Desportivo pelo IBDD-Unilearn, membro do Gedaf. Renata Fiori Puccetti é advogada de Biazzo Simon Advogados, professora de Direito Administrativo na PUCSP, especialista e mestranda em Direito Administrativo pela PUCSP.