Às vésperas do Natal do ano passado, reservou o Contran (Conselho Nacional de Trânsito) um presente para os motoristas brasileiros. Seguindo os passos do Papai Noel, mas sem a observação do princípio da isonomia (já diz a música que o bom velhinho "não esquece de ninguém"), publicou a Resolução n.º 168, em 22 de dezembro de 2004, obrigando aos motoristas que tiraram Carteira Nacional de Habilitação antes da alteração da Lei decorrente da entrada em vigor do Código de Trânsito Nacional a realizarem cursos de direção defensiva e de primeiros socorros, quando for a hora da renovação.
Agora, então, para renovar a CNH não basta ficar em três filas diferentes – do cadastro, do banco e da foto – e perder a manhã inteira de trabalho; deve ainda o motorista gastar mais tempo e dinheiro e fazer cursos oferecidos pelos Detrans ou pelos Centros de Formação de Condutores, a um custo estimado em R$ 50,00 (cinqüenta reais), no mínimo. O curso oferecido pode ser feito à distância (é o futuro chegando!), desde que se pague por ele, obviamente.
O texto da regra é o seguinte: "Art. 6.º, § 1.º Por ocasião da renovação da CNH o condutor que ainda não tenha freqüentado o curso de Direção Defensiva e de Primeiros Socorros, deverá cumprir o previsto no item 4 do anexo II desta resolução".
Com efeito, no Anexo II, item 4, pode-se encontrar as minúcias do curso a ser ministrado, aliás, muito parecido com o curso de reciclagem dos motoristas infratores, este sim, necessário e constitucional. Aquele, no entanto, mostra-se completamente fora da realidade, pois além de ser aplicado para motoristas não infratores parece funcionar apenas como máquina arrecadadora de dinheiro e lesiva aos direitos constitucionais dos cidadãos.
Ora, salta aos olhos as inconstitucionalidades contidas na referida Resolução, reclamando pronta intervenção do Poder Judiciário, antes que se consolide a situação e a excrescência vire matéria intocável seja pelo "interesse público" que se falsifica, seja pelos interesses privados, isto é, daqueles que lucrarão com o presente natalino. Por primário, não precisa nenhum esforço para se perceber que a principal das violações diz respeito à ofensa aos princípios constitucionais da legalidade e razoabilidade.
Como é do conhecimento geral e primário, a Administração Pública é regida pelos princípios constantes no art. 37, caput, da Constituição da República: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
A legalidade, para a Administração Pública – também chamada de conformidade – determina que somente poderá ela fazer aquilo que estiver expressamente previsto em lei. O modo de agir da Administração Pública está atrelado "à lei em todos os momentos lógicos e temporais da própria atividade".(1) Não pode, então, impor aos administrados comportamentos não delineados em lei ou que não tenham guarida nos fundamentos do ordenamento jurídico. Por isto, não poderia editar dita Resolução, porque carente de embasamento legal.
Pois bem, segundo o Código de Trânsito Brasileiro, art. 12, X, compete ao Contran: "normatizar os procedimentos sobre a aprendizagem, habilitação, expedição de documentos de condutores, e registro e licenciamento de veículos", ou seja, tem ele competência para normatizar os supracitados procedimentos, todos de acordo com o que rege o CTB. Não se pode, assim, ignorar as normas estabelecidas por ele.
Neste viés, os arts. 140 e seguintes, do CTB, determinam os procedimentos obrigatórios para a Habilitação dos condutores interessados a dirigir. Mais exatamente sobre a renovação da Habilitação, o art. 150, caput, dispõe: "ao renovar os exames previstos no artigo anterior, o condutor que não tenha curso de direção defensiva e primeiros socorros deverá a eles ser submetido, conforme normatização do Contran".
Poder-se-ia tentar justificar, assim, a legalidade da Resolução 168. No entanto, não há exames previstos no artigo anterior, porque não há artigo anterior. Tal dispositivo foi vetado, não podendo ser dele extraído qualquer efeito. Destarte, a remissão do art. 150 ao vetado art. 149, bem como seu texto, que condiciona a realização do curso de direção defensiva e primeiros socorros ao momento de renovação dos exames vetados, retira por completo a legalidade da imposição do art. 6.º, § 1.º, da Resolução em questão.
Por outro lado, tal dispositivo, ora questionado, é caso típico de ofensa ao princípio da razoabilidade.
O princípio da razoabilidade, segundo Luís Roberto Barroso(2): "permite ao Judiciário invalidar os atos legislativos ou administrativos quando: (a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado; (b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo para chegar ao mesmo resultado com menor ônus a um direito individual; (c) não haja proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, o que se perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha".
A simples leitura do art. 6.º, § 1º, da Resolução n.º 168 – somada com bom senso e conhecimentos gerais sobre o trânsito brasileiro – traz à tona uma só realidade: a necessidade de invalidação do ato por preencher as três hipóteses acima enumeradas.
Ora, não há qualquer adequação entre o fim perseguido – que se poderia enumerar como a melhora do trânsito brasileiro e a conscientização dos condutores – e a realização de cursos de direção defensiva e primeiros socorros para todos os condutores que desejem renovar sua CNH, a não ser na invencionice de quem não respeita os cidadãos. A melhora do trânsito brasileiro, por elementar, apenas ocorrerá com investimentos sérios em sinalização, planejamento, organização e manutenção das vias de rolamento, bem como no aumento da fiscalização (frise-se: humana e não por radares inconstitucionais) sobre as infrações, que se não resumem a excesso de velocidade.
Um curso ministrado à distância (que sequer se sabe se será presenciado e não há como controlar!) ou com apenas 15 horas-aula não garante a melhora dos condutores infratores que, por exemplo, ingerem bebidas alcoólicas e dirigem logo após, bem como não trazem qualquer responsabilidade para aqueles que abusam da velocidade, entregam carros a menores de idade, dentre outras condutas reprováveis.
A garantia dos cidadãos (eles são o fim último do Estado, não se pode esquecer!), por elementar, está na cultura. Para disto saber, basta acompanhar um motorista europeu e se sabe do que se está falando. Só que cultura não vem em 15 horas, mas em educação no ensino infantil, médio e fundamental, para que se formem motoristas e pedestres conscientes que, um dia, ensinarão seus des-cendentes. Em suma, o único fim que se pode atingir com o instrumento empregado é tirar dinheiro dos condutores e transferi-lo para as mãos dos Detrans ou dos Centros de Formação de Condutores. O pior, sem dúvida, é que aqui, mais uma vez, o cidadão paga a conta amarga do seu vilipêndio, muitos dos quais sem condições econômicas para tanto. As medidas neoliberais estão chegando, como se vê, à sem-vergonhice, ao máximo do desprezo possível que é aquele do menosprezo pela inteligência mínima, no fundo a marca do homem cegado pelas falsas premissas que o regem.
Nota-se, assim, que a medida é de todo desnecessária (além de ineficaz), pois há diversos meios alternativos para se chegar ao resultado almejado, sendo que todos começam bem antes da renovação das CNHs. O direito do condutor de renovar a sua CNH apenas com a realização de exame médico, desde que se não encaixe nas hipóteses de suspensão do seu direito de dirigir (condutores infratores, por exemplo), deve ser respeitado pelos órgãos públicos brasileiros. Há, aqui, visível direito adquirido dos condutores, habilitados conforme aprovação diante do cumprimento de todas as regras pertinentes. Renovação, portanto, só conforme a lei; nos seus restritos limites; e neles não estão, por certo, o que se pretende com a malfadada Resolução. Em casos assim, a liberdade escraviza e a lei liberta, dizia o abade Lacordaire.
É por isso que, aos neoliberais, o Estado (com suas amarras à legalidade) e a lei foram sempre os grandes empecilhos. Sem eles, porém, na atual conjuntura, a cada dia um novo bruxo apareceria com mágicas para escravizar os cidadãos, esquecendo os muitos que morreram para se ter tal status.
Por fim, a Administração Pública e os administrados só têm a perder com a medida. O que se ganha – se é que se ganha alguma coisa – é desproporcional com o que se perde. Perde-se dinheiro em investimento, tempo dos servidores públicos para orientar, ministrar os cursos, aplicar provas, juntar requerimentos, resolver os casos omissos, etc.; tempo dos condutores (que poderão até dormir nas aulas, desde que nelas estejam), inclusive com a burocratização da máquina estatal. Pode-se, enfim, até pensar que se trata de uma grande ofensa ao princípio da eficiência, tão em voga nos dias de hoje, mas, em sendo ele o ferrete do neoliberalismo de Hayek na Constituição da República, vira palavra que serve a qualquer senhor, aqui, ao que tudo indica, àqueles que usam o Estado para esgotar o cidadão de todas as formas possíveis.
O que se pode, então, concluir da precitada Resolução? Depende do respeito que se tem pela Constituição da República. Se se está, realmente, num Estado Democrático de Direito, onde a Carta Magna é regra primordial, deve-se concluir que ela tem seus dias contados e, para tanto, faz-se mister a força do Poder Judiciário, porque se não pode esperar de um Executivo que opera produzindo algo do gênero tenha inteligência(s) suficiente(s) para voltar atrás sponte própria.
Se não for assim, a única conclusão a que se chega é de que nem sempre no Natal se pode esperar um bom presente do Papai Noel.
Notas:
(1) GIANNINI, Massimo Severo. Diritto administrativo. Milano: Giuffré, 1970, p. 81. Tradução livre.
(2) BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 157.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Doutor pela Università degli Studi di Roma "La Sapienza". Procurador do Estado do Paraná. Advogado em Curitiba. Lijeane Cristina Pereira Santos é advogada em Curitiba. Especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar.