Em 1892, o mundo caminhava em meio à turbulência social e política, fruto de mudanças tecnológicas e científicas que transformaram a agricultura e a indústria levando a um processo migratório, concentração da terra e violenta urbanização. Trabalhadores viviam em condições subumanas, com carga horária excessiva, trabalho infantil, sem previdência social, saúde, educação e direitos trabalhistas. Os Estados nacionais se firmavam com guerras fratricidas, governados sem democracia, a custa do sacrifício dos trabalhadores, já que na guerra quem sofre são os trabalhadores.
Neste momento, a igreja católica, que não tinha como foco tratar de assuntos da terra orienta o mundo através da Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, dizendo quais caminhos a humanidade deveria seguir para construir uma sociedade mais justa e fraterna. A igreja iluminou o mundo com novos princípios que iriam influenciar o direito e os pensadores, falando sobre as bases para a proteção do trabalho das mulheres, crianças e trabalhadores com melhor remuneração.
E, contraditando com o movimento socialista emergente que queriam um Estado sob o comando dos trabalhadores ou com os conservadores que almejavam um Estado só para as elites a igreja afirma que as políticas públicas deveriam ser construídas de forma tripartite. Com a participação de governo, trabalhadores e empresários, que deveriam estar juntos construindo um Estado para o bem comum, sem luta de classes e em paz, sem guerra. Num tempo em que o sistema representativo parlamentar e partidário estavam em construção, e que viria a ser constitucionalizado no mundo por volta de 1930. O que nos faz afirmar: calma a democracia é nova. E por ultimo a Encíclica firma conceitos sobre o papel social da propriedade, sem negar o direito à propriedade privada e apela para o sentimento de caridade dos mais afortunados.
Passados 100 anos, o Papa João Paulo II, em comemoração a Encíclica Rerum Novarum, lança a Encíclica Centesimus Annus em 1992, dentro de um novo cenário de novidade das coisas, como afirma o texto. Novas mudanças tecnológicas e cientificas, novos conflitos e novos paradigmas estavam existindo e a igreja precisava dizer quais são os novos caminhos. Tempos em que os Estados nacionais já estavam consolidados, mas sofriam concorrência fruto da capitalização do mercado, que trouxe as mega-empresas e as agências reguladoras. E, mudando seus próprios paradigmas, a igreja reconhece o papel positivo do conflito na busca da justiça social, mas indicando que deve ser buscado através da negociação.
A Encíclica fortalece a importância da prevalência da liberdade do indivíduo frente o Estado e o mercado. Reafirma o tripartismo de gestão e fala, de forma mais clara, da democracia – que reconhece ainda imperfeita e em construção. Por isso defende empresas com a representação sindical no local de trabalho e da democracia como modelo de gestão do Estado, com organização tripartite dos poderes para a busca da verdade e do bem comum, destacando o papel dos parlamentos, partidos e sindicatos. Pois em 1892, ainda eram insipientes e não era claro como seriam organizados. De forma sutil, o papa João Paulo II, fala da queda do socialismo real, como se dissesse: o Papa Leão XIII tinha razão. O tripartismo e a democracia eram o caminho. Sabendo que Karl Marx nunca pregou em sua obra uma teoria de estado de partido único, mas que lamentavelmente alguns que leram sua obra de forma superficial levaram a prática ações que denegriram sua contribuição à formação do pensamento humano.
Reitera a Encíclica Centesimus Annus, a função social da propriedade, mas nos falando do destino universal dos bens e nos mostra que o mercado é uma conquista humana, nascido bem antes do capitalismo, mas que seus interesses não podem imperar sobre a sociedade. Ele deve servir, sim, para medir a eficiência e incentivar os avanços em benefício de todos.
Reafirma o direito do trabalho, repudiando o trabalho precário e defendendo o trabalho decente, e fala da importância dos empreendedores para a sociedade, como nos ensinou Josef A. Schumpeter. No entanto, eles têm que ter responsabilidade social: seus investimentos não devem visar apenas o lucro, tem que ter visão social também. E diz que a igreja não tem um modelo a propor, face o capitalismo não estar conseguindo resolver o problema da exclusão social, por isso não consegue legitimação ética nem a paz social. E, por isso, afirma que um dos nomes da paz é o desenvolvimento que faça a inclusão social.
A educação, a previdência e a saúde devem ser para todos. O crédito para o cooperativismo deve ser apoiado e incentivado, pois traz o espírito de comunhão. Alerta para a necessidade de o mundo democratizar a propriedade do conhecimento, da técnica e que o saber deve ser de acesso de todos os países. Trazem-nos a necessidade da construção de uma nova cultura contra a ganância, o consumismo e espírito predador – que leva o meio ambiente ao desequilíbrio. Dizendo-nos que não devemos ser apenas caridosos passivos para com os pobres, mas agora temos que ser solidários e fraternos participativos. Valorizando a simplicidade e a humildade como sabedoria, nos fazendo lembrar do livro A Imitação de Cristo, como atitude para construirmos uma sociedade mais justa e fraterna.
O que é possível através da metodologia descrita pelo papa João Paulo II para a elaboração da Encíclica Centesimus Annus, com a participação de instituições e milhões de pessoas pelo mundo afora que talvez seja representada de forma iluminada na música O Seu Olhar, de Arnaldo Antunes e Paulo Tati, que nos diz: ?O seu olhar lá fora. O seu olhar no céu. O seu olhar demora. O seu olhar no meu. O seu olhar seu olhar melhora. Melhora o meu?.
Geraldo Serathiuk é delegado Regional do Trabalho do Paraná.
