A história se repete

Na França, toda vez que surge uma idéia diferente na administração pública, um velho ditado se faz ouvir: “Quanto mais se muda, mais se permanece a mesma coisa”. Por mais que se acredite nas intenções de mudanças do presidente Luiz Inácio, não dá para desconsiderar a impressão de que, no Brasil, vai ser muito difícil reinventar a roda. As conversas de Lula com os governadores eleitos, que fazem parte da estratégia de governar com os círculos de mando e influência, lembram muito a chamada “política dos governadores”, principal mecanismo da Primeira República, cuja base foi a Constituição de 1891. Tratava-se, na época, da arte franciscana de fazer política, pela qual os governadores seriam favorecidos no governo, que, em troca, receberia apoio para a execução dos programas da administração federal.

Lula parece seguir os passos do paulista Campos Sales (1898-1902), o barbudinho de cavanhaque que organizou aquela forma de governar. Sales tinha a mesma idade do nosso presidente eleito, 57 anos, quando buscou o especial apoio de Minas Gerais, então com a maior bancada federal. Conquistou a simpatia do governador da época, Silviano Brandão, que aceitou a aliança, também conhecida como a política do café-com-leite, por divisar a possibilidade de levar os mineiros ao topo do poder. Ora, ao abrir um diálogo com os governadores, com destaque para os tucanos, liderados por Aécio Neves, Lula dá sinais de querer contar com o apoio dos comandos estaduais para aprovar reformas no atacado (tributária, previdenciária, trabalhista e política) e contas no varejo (prorrogação da alíquota de 27,5% do IRPF e elevação da alíquota da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, a Cide). Os estados receberão em troca mecanismos fiscais compensatórios e alternativas para evitar o estouro da bola de neve de uma dívida fiscal que ultrapassa, hoje, R$ 254 bilhões.

A política dos governadores, de selo lulista, é emblemática. De um lado, traduz esperteza. Lula sabe que o Poder Executivo, no Brasil, agrega mais força que o Legislativo. Os governos estaduais, na esteira do fortalecimento do Poder Executivo, ganharão densidade, atrelando às suas vigas as representações federais e estaduais, particularmente as que fazem política tradicional. Por isso, interessará ao novo presidente formar um colchão macio com os travesseiros dos governadores, a partir daqueles que darão as cartas no baralho do poder nos próximos anos.

Cinco bases de força formam o alicerce do edifício dos governadores. A mais forte é a dos tucanos, com sete governadores que abocanharam quase 23 milhões de votos. O PMDB tem a segunda base, com mais de 10 milhões; o PSB, a terceira, com 6,2 milhões; o PFL, a quarta, com 4,7 milhões; ficando o PT no bloco dos pequenos, com apenas 1,4 milhão. Não é à toa que Lula se empenha em montar uma engenharia de aproximação com o tucanato, a partir dos tucanos mineiros. Recai sobre Minas uma imensa dívida pública, que cresce quase R$ 1,5 bilhão por mês. Lula dará corda para que o neto de Tancredo suba os primeiros degraus da montanha e este, em retribuição, mobilizará a bancada mineira, jogando-a nos braços das reformas lulistas. Por tabela, o novo presidente pretende ganhar a boa vontade e o apoio de Geraldo Alckmin. Para isso deverá conceder a São Paulo o mesmo tratamento dado a Minas. Com os dois maiores colégios eleitorais no bolso, será fácil a Lula abrir espaços junto aos blocos governantes mais significativos e, na seqüência, administrar, a conta-gotas, um colírio para pupilas menos avermelhadas, ou seja, estados menores.

Campos Sales conseguiu, com sua política dos governadores, reforçar as oligarquias estaduais. O fermento de sua química foi troca de favores. Estamos em outro tempo. Mas o tempero franciscano da política é tão velho quanto Matusalém. Por isso mesmo, Lula não terá como evitar a cultura do toma-lá-dá-cá. A propósito: há 104 anos, o Sales de nossa história, eleito presidente, foi à Inglaterra negociar com os credores – na época, os Rothschilds. Os ingleses exigiram demissões em massa de funcionários, aumento de impostos, combate vigoroso à inflação, aumento das exportações e entrega de saldos aos credores. Lula, o barbudinho de hoje, foi falar com Bush, nos Estados Unidos. Pediu apoio para os bancos voltarem a abrir linhas de crédito ao Brasil. Muda o lugar, não a pauta que, em essência, se parece com a que o campineiro de cavanhaque carregou. Não é por nada, não, mas como a história se repete…

Gaudêncio Torquato

é jornalista, é professor titular da USP e consultor político. E-mail: gautorq@gtmarketing.com.br

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