A história do novo Código Civil Brasileiro

Como hoje é uma data banhada pela história, eu quero brevemente lembrar a história deste projeto. Um código civil não se muda como se muda de roupa, e ele somente tem significado e razão de ser quando há uma alteração fundamental dos paradigmas de retorno à sociedade. Houve três tentativas para a mudança do atual código civil, e só a terceira vingou. Razão pela qual podemos perguntar: “Porque vingou?” Em primeiro lugar pretendeu-se destacar do atual código civil a parte relativa aos direitos e obrigações, criando um código denominado “código das obrigações”. Esta comissão elaboradora deste projeto era composta por juízes como Ângelo Guimarães, Filadélfio de Azevedo, Orozimbo Nonato, três dos maiores da jurisprudência pátria, e, no entanto, não vingou. E então, passou-se à segunda tentativa, que teve menor ambição: fazer um código civil reduzido, sem a parte geral, regada pelos rigores, então um código das obrigações separadas, também não vingou. E nesta ocasião, fui convidado a substituir Francisco Campos, recentemente falecido, e que não tinha tido oportunidade de expressar seu pensamento. E eu disse ao então ministro da Justiça Luis Antonio Silva: “Já foi a época dos legisladores do Estado. A época nossa é tão complexa e tão cheia de problemas que só se confia o novo código a uma comissão que espelhe a vida e a experiência de Direito em todo o Brasil”.

E efetivamente fizemos a comissão, foi desde o Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e assim por diante estão presentes na feitura desta nova legislação. Como fazer um código escrito a sete mãos? Porquanto nós decidimos antes de mais nada, a nova estrutura a ser dada e preferimos estabelecer uma comissão que era, ao mesmo tempo revisora e elaboradora do código civil, com intenção de conservar ao máximo possível as leis de honra de Clovis Bevilacqua revistas do ponto de vista da linguagem, infelizmente apenas por transpor o valor pedagógico. Porque a revisão jurídica de que me orgulho faz uma revisão precisa para que tenham importância até a elaboração da obra. Pois bem, esta comissão estabeleceu algumas diretrizes que tinham que ser fundamentais. Em primeiro lugar, conservar o código na sua totalidade, porém dando ao código das obrigações uma extensão maior, inserindo uma parte nova, que é o chamado Direito da Empresa, onde existe uma coisa chamada Livro das Atividades Negociais. E que teve como resultado a termo de ordem e com razão, chamar Direito da Empresa. Não que o Direito Comercial tenha desaparecido, mas o Direito Comercial, na realidade hoje é o Direito Industrial, é o direito da prestação de serviços, portanto se estendeu a sua atividade. O nome é o seu tradicional, mas a sua matéria fundamental tratada se expandiu, ou progrediu no século passado, depois de um século revolucionário.

Conquista da ciência

E daí mais uma razão de seu do novo Código Civil, porque o século passado revolucionou tudo. O século passado foi o das piores guerras e o das maiores conquistas científicas. De maneira que era necessário dar uma nova estrutura, a começar pela linguagem não mais a alta linguagem, até certo ponto rebuscada, impressionista que é o código atual, que é mais a linguagem do Padre Vieira que a falada na sociedade civil paulista e brasileira, na paranaense e brasileira, linguagem simples e espontânea, a mais possível achegada à compreensão comum a transparência da verdade que deve ser conhecida. Dia virá em que se colocara em evidencia com um dos valores fundamentais do novo código um novo sentido altruísta da linguagem. A linguagem é um pólo dedicado à cultura, como disse um grande filósofo: a linguagem é o homem na sua fundamentação, quando é que o homem erectus apareceu? O homem erectus é aquele que substitui o grito animalesco pela fala. Falar significa adquirir as grandezas e as qualidades excelentes do ser humano, é a fala que distingue o homem, de maneira que quando se passa da ordem científica dizem que o problema da linguagem é um problema básico, fundamental.

Por outro lado, nós entendemos a luz da nova ciência jurídica da concreção jurídica que devíamos ponderar. As normas preocupadas apenas com juros e dízimos, as normas jurídicas que estão elaboradas no pressuposto que o direito encontra em si mesmo a sua resposta. O código civil atual, este que vai ser revogado a partir de janeiro, o código ainda em vigor se caracteriza pela preocupação de dar soluções jurídicas aos problemas jurídicos. Alguém poderia falar “mas existe outra solução?” Sim, existe a ética, o direito só vale enquanto parte componente da estrutura moral, da cultura do homem e é a razão pela qual um dos princípios fundamentais da nova codificação chama-se eticidade. Eticidade significa ter o direito sempre em função da boa-fé. No código civil atual só se fala em boa-fé a propósito da posse, posse de boa e de má-fé. Ao contrário do código atual, no código futuro a palavra boa-fé a todo instante está presente, como eu vou lembrar através da citação de alguns de seus artigos fundamentais. Porque o que interessa não é aquilo que particular se trouxe de novo, mas o espírito novo que deve presidir, que presidiu a elaboração do código e deve presidir sua interpretação. O voto que faço no início deste Congresso é que a nova lei tenha uma nova interpretação. Porque amanhã, se este novo código for interpretado no mesmo espírito do código atual estará em grande parte comprometido.

O direito na ética

Nós da hermenêutica, nós da interpretação, vale lembrar que o conhecimento pleno das novas leis, e eu quero lembrar aqui quatro artigos do código que dão a expressão pura do que se chama “o direito da ética”, ou o direito na ética, é o artigo 113. Os devotos jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e o uso imutável de sua celebração. E mais, no artigo 187, que dá sentido ao mesmo tempo ético e social ao direito, “comete-se ato ilícito”, e eu chamo muita atenção a este artigo que, como disse o jurista Francisco do Amaral, só ele justifica a mudança do código. Comete-se ato ilícito o titular do direito que ao exerce-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelo código civil. Notai bem esta afirmação fundamental. Ter um direito significa ter também um dever, e porque como ensinam os filósofos do direito, o direito que eu tenho termina onde o direito do outro começa. Então há de se levar em conta o espírito social, e não apenas o espírito individualista. O que caracteriza o código ainda em vigor é o individualismo, pela simples razão de que foi elaborado por um jurista imenso Clóvis Bevilacqua, mas para uma sociedade ainda agrária, a população brasileira era ainda 70% moradora no campo, quando foi elaborado o código em 1916. Ao contrário de uma alteração de 180$, 70% da população brasileira vivem hoje na cidade. E isto significa progresso, e os desafios dos programas, avanços e produção de bens, e é por esta razão que se proclama à superioridade do homem social sobre o indivíduo no casulo da sua vaidade.

Daí, no artigo 422, os contratantes são obrigados a aguardar aqui na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios éticos e de boa-fé. O jurista poderá, portanto, dizer que o direito está batendo boca com o código civil aos costumes imperativos da época. E que ganho de eticidade é uma das novidades do código. Quando me perguntaram “o que é que o código novo traz de novo?” Eu disse “traz de novo um novo espírito: a eticidade no direito”. Eticidade acompanhada do princípio de socialidade, como objetivo fundamental. Hoje em dia o povo brasileiro, ou sua cidade, na sua condição imutável e a sua preocupação é realizar-se na sua plenitude como deve ser o próprio País contente de sua vocação democrata. Daí o artigo 421, a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Este é um ponto para nós importante: a constituição de 1988 proclama que o direito de propriedade é um direito social. Na nossa constituição a sociedade tem sua função social. Porém eu pergunto: se o contacto também não fosse exercido em sua função social o que representaria sua pesagem social? A função social do contrato se projeta de maneira direta como expressão da sociedade civil. Ainda a repetição de que esta via de poder e ter direito é uma via de mão dupla. O direito não é uma abstração, é uma concreção de valores e tendo como base o valor da pessoa humana.

O social

Qual é o centro da referência do novo código? É a pessoa humana. O que caracteriza a ética é ter a impressão do modo de ser e desenvolver o homem como pessoa. Na consciência daquele que diz que é, e do que se pode pretender e o que se deve realizar. E daí é que surge a idéia de justiça que não é senão uma relação equilibrada entre pessoas. Por que se não se tem o conceito de pessoas também não se tem o conceito de justiça. Quem lhes fala não é apenas um jurista, é, sobretudo um filósofo. E não há de estranhar-se que este código civil se cobrisse de valores filósofos. Porquanto, somente numa compreensão filosófica é que se tem a plenitude dos direitos fundamentais. É a razão pela qual em matéria de direitos reais, houve uma alteração fundamental: os estudantes de direito ao chegar ao capítulo relativo à posse, são informados a respeito da teoria do Savigny e do Ihering. Um levando em conta a detenção de uma coisa, o outro a pragmática desta somática dividida em módulos.

Pois bem, o novo código traz uma novidade: a posse de trabalho. Aquele que despossuído de haveres, que não possua nenhuma propriedade, encontrar em abandono a terra, o que acontece aos bilhões no Brasil, e nesta propriedade pequena construir sua lavoura, e sua casa de moradia, isto, ele terá privilégio do domínio. É a posse do trabalho “pro labore”. Daí a redução do prazo do artigo 1242. Se um imóvel houver sido requerido onerosamente, com base em transcrição, chancelada posteriormente, desde que os possuidores não estiverem comprometidos com moradia ou realizado investimento ou melhorias econômicas o prazo para aquisição do domínio pela posse é reduzido pela metade. Este é o sentido da socialidade.

As distinções

Eu poderia lembra, ainda, o artigo 1228, que disciplina a propriedade nas favelas, mas isto iria tomar tempo maior. Eu prefiro tratar do terceiro principio inovador da nova codificação que é o princípio da operabilidade e que abre a opção para a via que seja mais rápida para a solução do problema. Vou dar apenas um exemplo fundamental para os juristas e mestres aqui presentes. Nos meus mais de 70 anos de estudos do direito e este companheiro que vos fala tem 92 anos e aos 18 já era estudante de direito, eu sempre no meu estudo andei à procura de uma distinção entre prescrição e decadência. Quando é que o direito prescreve e quando é que se decai um direito. Qual a diferença entre um e outro? Jamais encontrei uma solução que me compensasse. E então, ao elaborar o código, a comissão chegou a esta conclusão: a maneira única de operar, nós advogados somos conhecidos como os meros operadores de direito, e os juízes também são operadores de direito, a única solução de operabilidade é na parte geral do código enumerar. Em números claros o caso de prescrição “prescreve” e vem a lista completa dos casos de prescrição. Os demais casos são libertadores, solução simples, pragmática, assim, por exemplo, a responsabilidade de um empreiteiro pela construção de uma casa ou edifício com cinco anos não é o caso de prescrição, é caso de decadência. E toda vez que surge um caso de decadência, ele está sujeito à norma, a regra, ao mandamento, é uma continuidade do andamento dele. Na parte geral há caso de decadência, e na parte especial também. Pois bem, em tudo estão verificando que o código civil tem a preocupação fundamental de que este espírito prático e pragmático se revela, por exemplo, em matéria de direito de família.

Já o projeto do código, o anteprojeto do código já deu um passo à frente estabelecendo os direitos da mulher de exercer juntamente com o marido o pátrio poder. E já houve um anteprojeto em que dá a mulher o direito de ir ao juiz, para reclamar sobre o que se referisse à educação dos filhos. Pois bem, este grande passo já dado durante o anteprojeto se transformou num passo revolucionário na constituição de 1988, quando proclamou a igualdade absoluta para os filhos. O direito de família brasileiro, e em todo o direito universal, não há diferença entre os filhos, nem mesmo os adulterinos e os adotivos. Se é filho basta! Onde há a filiação há: ou deixa de se reconhecer as suas pretensões. E é por esta razão que propus ao Senado, em lugar do pátrio poder existente que se dissesse poder familiar. Poder familiar cabe tanto ao marido quanto à esposa em qualquer situação. E manteve-se a forma no sentido de que havendo divergência entre o casal pode qualquer membro se dirigir ao juiz para que ele possa declarar qual o caminho a ser dado. É claro que vai ao juiz para tratar de problemas concretos, não é para resolver ou sustentar provas de amor. E o juiz, por sua vez, não tem a ver com o bom entendimento do casal, mas tem a ver com o tratamento da prole.

Maior poder ao juiz

Chegou a hora de falar de uma das alterações fundamentais do código civil: é a competência maior que vai ter um juiz e o trabalho maior que vai ter o advogado. É claro que faz sentido as afirmações: maior serviço para o advogado, maior responsabilidade para o juiz. É que o código civil preferiu trabalhar com normas abertas, não mais como no código atual: o direito estritamente e rigorosamente jurídico, mas a norma aberta, tendo assim o direito aberturas para a evolução futura. É a chamada prevalência da norma aberta sobre a norma fechada, e daí, então, a maior responsabilidade do advogado porque seu campo de justiça aumentou. E ele deve achar no código a proteção legítima do seu contribuinte e formular, a iniciar do novo espírito criador. Eu creio na capacidade criadora do bacharel no Brasil, porquanto tomando-me bastante tempo eu tenho visto tanto na juventude quanto na maturidade existir a capacidade criadora do homem de direito brasileiro.

A um passo da existência de uma norma aberta cresce a responsabilidade do juiz, porque ele é que no fundo vai responder se o advogado criou um simbolismo certo ou errado na sua valorização do quadro social. E então, haverá maior responsabilidade. Vou dar um exemplo, para que se compreenda a responsabilidade do juiz. De acordo com a legislação universal, e brasileira também, terminada a locação de imóveis, é obrigado o locatário a devolver o bem ao seu dono. E se não o faz, responde pelo aluguel fixado pela parte lesada. E o código atual, na sua visão individualista, estabelece ao proprietário o direito de executar este valor. Nós mantemos esta forma, mas acrescentamos, se for exagerada a pretensão do locador, o juiz poderá estabelecer aquele que manda a justiça e o critério moral na aplicação do presente. E a todo o instante o código civil que louva o juiz na competência e na escolha da operabilidade do julgador, falando para juízes e advogados eu não podia deixar de observar este ponto fundamental.

Por outro lado, era necessário também, diante da chamada “união estável” fazer uma clara definição entre união estável e concubinato. O concubinato ainda é considerado um ato à margem da lei, porque é à margem do casamento, e à margem também da união estável. Na união estável, a constituição a estabeleceu como uma nova entidade familiar. E a constituição estabelece: “Há união estável quando um homem e uma mulher”. Deixando muito claro o artigo da constituição, estabelece que a união estável existe quando um homem e uma mulher estão juntos. Portanto no código civil não poderia estar previsto o homossexualismo na união estável. Portanto, então estaria ofendendo a Constituição do Estado, quando um homem e uma mulher se dispõem a viver em comum, com intenção de formar uma família. E diz a constituição, a lei tudo fará para transformar a união estável em um casamento. Quer dizer que a constituição ainda considera o casamento a união estável por excelência. A união estável é uma espécie de casamento de experiência, muito compreensível nesta época. Do que adianta casar e de repente, hoje se casa e se descasa tão depressa. Eu quando recebo um convite de casamento corro para passar um telegrama antes que a separação ocorra.

As intenções

E então, nós estamos vendo com que espírito o código foi feito. Quando me convidaram para participar deste Congresso eu pensei bem, o que importa é transmitir a nossa intenção. E neste caso verificar qual foi o valor intencional que quis constituir para que se possa com acerto interpretá-lo. A nova hermenêutica com um novo espírito. E assim por diante nós poderíamos ir além para mostrar como se deve ter cuidado para estabelecer e preencher as lacunas da legislação. E surge aí um problema: e o cônjuge, é herdeiro? O código atual declara que o cônjuge não é herdeiro, pela razão muito simples, o código previa antes a comunhão universal de bens. E pela comunhão universal de bens, o cônjuge não tem nada que herdar o que ele ganhar é dele. Quando falece o marido ou a mulher, a metade dos valores é do cônjuge. Porém a legislação mudou, a nova norma de regime de bens é da divisão particular de bens. De maneira que com o casamento feito, a partir da lei, há neste princípio fundamental cada um dos cônjuges mantém a sua propriedade e assim se torna comum apenas aquilo que conquistam. E então compreende-se que a situação mudada, com exceção do regime de bens do casamento, o cônjuge tem direito de participar do patrimônio do consórcio em concorrência com os dependentes de até a quarta parte. Porque também sete ou oito filhos seriam um absurdo. Há um limite de participação até a quarta parte, é um decreto de espírito prático.

Estão vendo, portanto, que o código civil que vai entrar em vigor traz uma nova compreensão e ao mesmo tempo realiza um ponto muito importante que é a da responsabilidade do direito civil. Pelo código atual é responsável pelo dano causado àquele que tiver culpa, e este princípio já não vigora no direito do trabalho, no acidente do trabalho. Nós preferimos universalizar este princípio estabelecendo esta norma: quando um determinado trabalho, pela sua própria estrutura, envolve o risco de danos, este dano se torna objetivo e independente de culpa. Seria a teoria do risco, mas com uma estrutura determinada, uma estrutura da atividade social. Então uma nova compreensão brasileira da teoria do risco. Com este exemplo, que é mais técnico, demonstramos a preocupação com a teoria e a técnica.

A humildade

Eis o que eu queria dizer nesta noite de tanta solidariedade. Queria com isto dizer, que me sinto feliz por ter podido colaborar na feitura desta nova lei civil, porquanto ela recebeu mil emendas da Câmara dos Deputados, a maior parte repetida, ela recebeu cerca de 400 emendas do Senado e mais 160 da Câmara dos Deputados aonde se reviu pela última vez. É um código que brotou para a sociedade brasileira no seu conduto e na sua expressão total. E eu fui apenas o responsável pela revisão e pela supervisão do trabalho. Muitas vezes interferi, e interferi bem de longe ao receber os trabalhos dos vários colaboradores e tive a obrigação de sistematizá-los. O maior trabalho que eu tive foi à sistematização de Moreira Alves, Clovis de Barros Filho e Cláudio Humberto Castelo Branco, um sem ouvir o outro. Eu tive que fazer uma unidade sistemática de maneira que um completasse o outro, e, sobretudo com uma linguagem clara, comum a toda população. Espero que este espírito de confiança nos valores do Brasil seja também de confiança no novo código.

Miguel Reale

é presidente da comissão que elaborou o Novo Código Civil.

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