A história como arte

Não há como negar em nossos dias uma reviravolta ocorrida em praticamente todos os campos do saber. Sob designações diversas, pós-modernidade, neomodernidade, pós-estruturalismo, desconstrucionismo, crise dos grandes modelos explicativos, etc., o que se impõe com evidência é o fato de que existe uma ruptura facilmente identificável entre um discurso que utiliza metáforas de verticalidade, e outro, que envia tais metáforas para um limbo conceitual.

Para os teóricos da modernidade o visível não passa de aparência. Subjacente a tudo o que vemos, existe um nível mais profundo, essencial, e é somente a partir dele que podemos verdadeiramente entender nossos objetos de estudo. Para o marxismo, por exemplo, as instituições, a superestrutura, que constitui o campo do visível, se explica somente a partir da estrutura, a essência, uma instância invisível, mas primordial. Do mesmo modo, para a psicanálise, o comportamento humano, que constitui o campo do visível, se explica por mecanismos psicológicos complexos, inconscientes, e, portanto, invisíveis. Tais metáforas de verticalidade, porém, esfacelam-se frente à crítica empreendida pelos teóricos do pós-modernismo. Não existe uma realidade primordial, subjacente ao mundo dos fenômenos. O que existe é o simulacro, a construção de uma realidade outra. Não a descoberta de um nível mais profundo de explicação do real, mas a invenção de um outro real. Não se trata simplesmente de negar o valor das teorias modernistas, mas de perceber seu verdadeiro alcance.

Um detalhe significativo é o uso freqüente do prefixo “meta” em diversos neologismos pós-modernos. Além do tradicional vocábulo “metafísica”, de origem antiga, fala-se também hoje de “metalinguagem”, “metanarrativa”, “metaficção”, e até mesmo “metahistória”. Tais neologismos apontam para o caráter transitório de tudo o que a modernidade considerava sólido e estável. Dir-se-á que a cultura pós-modernista conduz ao niilismo e ao relativismo. Talvez. Contudo, prefiro acreditar que não se trata de um relativismo avassalador, de uma razão que, ao criticar a própria razão, destrói a si mesma, mas, longe disso, de uma razão que passa a pensar sobre si mesma a partir de uma perspectiva irônica.

Mas o que tem tudo isso a ver com a produção historiográfica contemporânea? Para responder a esta questão, nada melhor do que as pistas que nos são dadas por Hayden White, em sua obra Tropics of Discourse. White nos diz que a historiografia, no século XIX, assumia um status privilegiado. Quando questionados pelos cientistas, os historiadores respondiam que a História, na verdade, era um tipo especial de ciência, algo muito próximo da arte. Quando questionados pelos literatos, os historiadores defendiam-se, apelando para o caráter científico de sua disciplina. Afinal, a História não dependia somente da imaginação de seus autores. Os historiadores, em última instância, tinham de lidar com “o que realmente aconteceu”. Aprisionada em uma perspectiva realista, a historiografia fechou-se a novos e diferentes modos de apreensão da História. Ao passo que a arte e a ciência responderam aos anseios dos novos tempos, a História permaneceu, de maneira geral, nos mesmos moldes em que era concebida no século XIX. Para Hayden White, portanto, a historiografia só teria a ganhar, abrindo-se a outros modos de representação.

F. R. Ankersmit, em seu ensaio “Historiography and Postmodernism”, propõe indagações semelhantes às de White. Para ele também a História se encontra em um dilema entre arte e ciência. Numa perspectiva pós-modernista, porém, não se trataria de inserir a História em uma nova perspectiva científica, mas sim de abandonar toda pretensão de cientificidade. De fato, não se trata mais de descobrir uma verdade histórica fundamental subjacente ao universo das aparências, mas aceitar a investigação do passado como uma construção intelectual de valor primordialmente estético.

Pensar a História como arte, porém, ou mesmo questionar o modelo de ciência associado a grande parte da produção historiográfica contemporânea, é algo que ainda encontra grande resistência entre os historiadores profissionais. Já houve até quem dissesse que questionamentos desse tipo deveriam ser evitados como uma questão de higiene intelectual. A historiadora Nancy F. Partner, discutindo esta questão, por exemplo, argumenta que “a desestabilização teórica da História alcançada pelos modos de crítica com base na linguagem não tiveram qualquer efeito prático na prática acadêmica porque os acadêmicos não têm nada a ganhar e tudo a perder ao desmantelarem seu código visível especial de raciocínio fundamentado na evidência e se abrirem às acusações inevitáveis de fraude, desonestidade e inferioridade”.

Talvez Partner esteja certa. Talvez a prática da escrita historiográfica tenha sido realmente muito pouco afetada pelos debates acerca do status epistemológico do conhecimento histórico. Talvez os historiadores tenham realmente muito a perder abrindo-se aos tipos de questionamentos com os quais são confrontados por profissionais de outras áreas. Mas, afinal, qual é a solução? Se os historiadores põem em risco sua disciplina ao levarem a sério as acusações de fraude, desonestidade e inferioridade, será que eles devem simplesmente ignorar essas acusações, permanecendo fraudulentos, desonestos e inferiores, ou, pelo menos, sendo vistos assim por intelectuais de outras áreas? De minha parte, creio que um esforço sério e decidido em responder a essas questões, seja numa perspectiva de simpatia ou antagonismo ao pós-modernismo e às tendências afins, não é algo a ser evitado, mas pelo contrário, só pode alargar os horizontes do historiador e enriquecer os fundamentos teóricos de sua disciplina.

José Antonio Vasconcelos

é doutor em História Social pela Unicamp, Professor na Universidade Tuiuti do Paraná e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
historicismo@hotmail.com

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