Antes do acordo que permitiu a fixação do subteto na Reforma da Previdência, a imprensa vinha noticiando, com destaque, que as entidades nacionais de classe da Magistratura e do Ministério Público estavam ameaçando fazer uma greve inédita, caso o governo federal não fosse receptivo às suas reivindicações na Reforma da Previdência. Buscavam e ainda buscam tratamento distinto dessas carreiras na atual Reforma, assim como já o tiverem os militares, mas até então não vinham conseguindo seu intento, seja na Proposta de Emenda Constitucional do governo, seja no substitutivo do relator José Pimentel.
É certo que as lideranças dessas classes vinham já irritadas com a falta de coerência do PT antes das eleições e depois destas, que a muitos enganou, quando Lula garantiu que não se iria tocar nos direitos dos funcionários públicos nem em suas aposentadorias. Acresce que, no dia da decisão em favor da greve, acabavam de ser espicaçadas pela quebra do compromisso político que, na véspera mesmo, os líderes dos partidos de sustentação do governo fizeram com o Presidente do STF.
Nas duas últimas semanas, o noticiário mudou. Vislumbrando sinais de que o governo federal iria ceder ao menos na questão do subteto, e instadas pelo Presidente do STF, as lideranças classistas da Magistratura e do Ministério Público retiraram a ameaça de greve.
Embora essa paralisação, ao menos por ora, esteja superada, convém refletir sobre a questão da greve que os juízes e promotores ameaçaram fazer.
A nosso ver, nada justifica esse tipo de greve.
Ainda que o governo do PT queira tratá-los no fosso geral do funcionalismo comum, salta aos olhos até dos leigos que Ministério Público e Magistratura têm peculiaridades. Enquanto ao funcionário público comum se proíbe apenas a acumulação remunerada de cargos públicos, os promotores e juízes estão impedidos de exercer, ainda que em disponibilidade, qualquer outro cargo ou função, remunerados ou não, salvo uma única função de magistério. Além disso, juízes e promotores não podem advogar, não podem dedicar-se às atividades político-partidárias, não podem exercer o comércio nem participar de sociedades comerciais, exceto como quotistas ou acionistas.
O promotor e o juiz são promotores e juízes até fora do horário de expediente, todos os dias da semana, inclusive nos sábados e domingos, pois a maioria deles trabalha, e trabalha muito, para dar conta do enorme volume de serviços pelos quais são responsáveis, inclusive levando processos para trabalhar em casa.
Tendo eles de dedicar-se com exclusividade às suas altas responsabilidades, só pessoas desinformadas ou de má-fé diriam que não devam ser tratados de forma peculiar, tal a gama de seus impedimentos, distintos dos demais agentes e funcionários públicos. Depois, se mal remunerados, haveria o risco, de todo indesejável para o exercício das funções, de começarem a fazer “bicos”, como se dá em outros ramos infelizmente mal remunerados do serviço público. Aí nós os veríamos a cuidar do comércio, não desagradando clientes, dando assessoria sub-reptícia a escritórios de advocacia, exercendo toda sorte de outras atividades complementares ou até mais absorventes do que aquelas que deveriam ser a principalÁ Sem dúvida, estariam criados sérios riscos de todo o gênero para suas atividades funcionais, sem falar que poderiam dedicar o melhor de seu tempo e de sua inteligência às atividades privadas e não às funções públicas.
Magistratura e Ministério Público são peculiares, pois exercem parcela direta do Poder estatal: quando julga, o Poder Judiciário resolve, de maneira incontrastável, uma lide entre dois ou mais contendores; quando decide privativamente se propõe ou não uma acusação penal, o Ministério Público exerce parcela direta da soberania, pois condiciona o exercício do direito de punir do Estado.
Enganam-se os que dizem que não haveria mais candidatos a juiz e promotor se suas garantias remuneratórias e de aposentadoria fossem minimizadas. Juízes e promotores haveria tanto ou até mais que hoje, mas não venceriam o mesmo rigor do atual concurso seletivo de ingresso; promotores e juízes haveria, mas seriam ao mesmo tempo quitandeiros, vendedores ambulantes, talvez também médicos e dentistas, e muitos riscos haveria quando tentassem suplementar sua remuneração.
Mas, e o direito de greve? Não devem fazê-lo por que esse direito não foi regulamentado, como já se disse no STF num julgamento? Não por isso, até porque, jamais regulamentado, jamais teriam os funcionários públicos o direito de greveÁ Não devem fazer greve, sim, porque juízes e promotores não são funcionários públicos em sentido estrito. São órgãos do Poder constitucional; são agentes políticos, embora apartidários, que, em nome do Estado, tomam, sob sua exclusiva responsabilidade, as últimas e mais graves decisões em defesa do interesse público. Imaginem um presidente da República em greve, os governadores, os juízes ou os promotoresÁ Estas autoridades podem cometer até mesmo crime de responsabilidade Å aí está mais uma diferença entre os agentes políticos e os funcionários públicos comuns.
Além disso, uma greve dos juízes e promotores pouco seria sentida pelo governo. A Administração tem a auto-executoriedade de seus atos; dispõe de medidas provisórias, do poder regulamentar e do poder de polícia. A Administração ainda conseguiria governar. Mais atingida seria, antes, a população, beneficiária última dos serviços da Magistratura e do Ministério Público. Fosse uma greve de caminhoneiros ou eletricitários, esta paralisaria economicamente o País, e seria sentida de forma intensa e imediata pelos governantes. Mas uma greve de juízes e promotores não. Seria como uma greve de professores, que sempre causa um mal social incalculável, mas teria pouca força de pressão imediata sobre os governantes.
Que os juízes e promotores de Justiça devem considerar é que, se querem fazer-se notar, têm instrumentos muito melhores que as greves. É trabalhar mais e melhor, e sempre com redobrado afinco, pois, neste País, há muita coisa para ser colocada em pratos limpos, e, para isso, é indispensável o seu trabalho, e não sua greveÁ
Hugo Nigro Mazzilli
é advogado e consultor jurídico, tendo sido Presidente da Associação Paulista do Ministério Público; é autor do livro Regime jurídico do Ministério Público, 5.ª ed. Saraiva.