Quais
são os aspectos jurídicos, religiosos e políticos que perpassam a greve
de fome do Bispo do Sertão, dom Luiz Flávio Cappio?
É preciso que
fique claro que a greve de fome de dom Cappio não é uma tentativa de
suicídio, pois ele foi assistido por um médico durante toda a
manifestação, o que exclui o caráter de sacrifício e a caracteriza como
ato político de resistência.
Com a decisão do Supremo Tribunal
Federal, proferida no último dia 19 de dezembro, chancela-se
judicialmente a disposição do governo federal em executar as obras de
transposição do Rio São Francisco. A decisão confere ao Poder Executivo
a prerrogativa de decidir pela pertinência e pela conveniência em
executar obras públicas. Ao Executivo é reconhecido o poder
discricionário para decidir não apenas o que fazer, mas também como
fazer. É que no sistema jurídico vigente nas chamadas ?democracias
constitucionais? a origem e o exercício do poder são circunscritos ao
Estado, resumindo a participação popular nas deliberações políticas a
um simulacro de democracia.
A tradição judaico-cristã é permeada
pela submissão da vida à fé. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento
a imolação, ou o ato de oferecer um sacrifício como forma de
purificação, é ritualizada como oferenda à divindade. Os exemplos são
vários, bastam dois: no Antigo Testamento, ficando demonstrada a fé de
Abraão, torna-se possível que um cordeiro seja sacrificado no lugar de
Isaac. No Novo, o Cristo é feito cordeiro e como tal sua imolação quer
significar o ato permanente de purificação com o qual Jesus subverte o
pecado, abrindo espaço para a salvação da humanidade. Em ambos a
imolação é o ato com o qual a vida é submetida à salvação. No primeiro
caso, a preservação da vida de Isaac é elemento secundário, pois a vida
é ofuscada pela demonstração inequívoca da fé de Abraão, possibilitando
assim que o cordeiro seja imolado em seu lugar. No segundo, o cordeiro
de Deus se oferece em sacrifício permanentemente na Eucaristia, na
qual, para os teólogos católicos, ocorre a transubstanciação do pão e
do vinho em corpo e em sangue de Cristo. Desse modo, a imolação do
Cristo é o ato sublime de redenção da humanidade, precisamente a que
explicita a natureza divina de Jesus, ou seja, a redenção da humanidade
se dá por uma imolação.
Percorridos esses dois caminhos, é
preciso que sejam explicitados os aspectos políticos do ato de
resistência expressos por uma greve de fome.
Primeiro, é
necessário evidenciar que a greve de fome não visava e nem era uma
tentativa de suicídio. Era uma manifestação de resistência, portanto um
ato político contra a transposição das águas do Velho Chico e pela
construção de cisternas para atenderem a inadiável necessidade de água
do sertanejo.
A manifestação política do bispo tinha como
propósito denunciar as distorções daquilo que o governo federal fez
chegar à opinião pública: as obras favorecem os habitantes das regiões
metropolitanas e aqueles que se beneficiam das atividades econômicas
decorrentes da transposição. Embora a transposição seja algo necessário
ao Nordeste brasileiro, a obra não é suficiente para aplacar os
crônicos problemas advindos da falta de segurança hídrica. Daí o pleito
apresentado por dom Cappio pela construção de 1 milhão de cisternas,
pois a simples fragmentação possibilitaria que as pessoas do semi-árido
tivessem fácil e permanente acesso à água limpa.
No entanto,
contra a manifestação política de d. Cappio foram deferidos ataques que
podem ser assim resumidos: 1) pode um religioso tentar o suicídio? e 2)
devido à separação entre religião e Estado, é lícito a um bispo
imiscuir-se na política?
Quanto ao primeiro: além do
acompanhamento médico durante toda a greve, a manifestação política do
bispo tinha o propósito de representar os interesses e aplacar o
sofrimento de milhões de pessoas que vivem com água escassa e imprópria
para o consumo. Nada tinha de ato contra a própria vida, mas exprime
uma dimensão que transcende quaisquer tendências egoísticas: abnegação
e amor às pessoas do sertão.
Embora seja bispo católico, Luiz
Flávio Cappio tem o direito fundamental, como qualquer cidadão, a
organizar-se politicamente e a realizar quaisquer manifestações.
Restrições a seu comportamento jamais poderiam partir do Estado. Como
não há subordinação do catolicismo ao Estado brasileiro, não é
aceitável que autoridades do governo se voltem contra um cidadão sob o
argumento de que sua posição como membro de uma instituição religiosa o
obriga a alguns comportamentos. Este não é um assunto da alçada do
Estado e, como tal, obriga os ora ocupantes das funções de governo a
manterem solene distância e rigoroso silêncio. Como cidadão, ele pode
optar por um jejum como forma de evidenciar uma determinada opção
política. Ocorre que durante essa manifestação, ministros de Estado
deram declarações deselegantes e autoritárias, atingindo a soberana
manifestação de um cidadão, por inadmitirem comportamentos que rejeitem
a posição hegemônica do Estado.
Quando ocupantes do Estado não
toleram visões de mundo distintas da hegemônica e a refutam a partir da
função que ocupam por delegação, mais longe estamos da democracia,
portanto mais perto do autoritarismo e da substituição da sociedade
civil por um Estado total.
Viva o Bispo do Sertão!
Luiz
Moreira é mestre em Filosofia e doutor em Direito pela UFMG e autor,
dentre outros, do livro A Constituição como Simulacro (Lumen Juris,
2007).
