Chega a ser comovente meditar sobre a nossa história e ver o presidente do Brasil visitando países africanos, de onde vieram, durante séculos, milhares de pessoas, que, na condição de escravos, foram obrigadas a construir a riqueza de muitos por aqui. A despeito de algumas escorregadelas nos discursos de improviso, o presidente Lula pode, de fato, dizer, como diz com orgulho, que nenhum outro presidente visitou tantos países africanos em tão curto período.
“A nossa relação com a África – afirmou ele quarta-feira no Gabão – é uma relação de irmandade, de um país que reconhece a importância que os africanos tiveram na formação de nossa gente, nossa beleza, nossa riqueza, nossa cultura.” De fato, foram muitos e longos anos em que homens e mulheres africanos, com seu sangue, construíram riquezas no Brasil. Muitas gerações passaram, como muito bem observou o presidente, sem conhecer a palavra liberdade.
Só essas breves considerações já seriam suficientes para justificar o gesto de Lula em Libreville, quando assinou acordo de renegociação de dívidas do governo do Gabão para com o Brasil, num montante de trinta e seis milhões de dólares. O valor do débito será convertido em incentivos fiscais para empresas brasileiras que ali investirem – na prática, um perdão de dívida que o ditador Omar Bongo, há 37 anos no poder, naturalmente agradece.
Na doutrina de Lula, mesmo não sendo um país rico, o Brasil tem o dever histórico, ético, político e humanitário de repassar experiências e distribuir parte de seus recursos com as “nações irmãs”. Palmas e, como moeda de troca, o apoio encomendado às pretensões brasileiras na ONU. Para completar seu linear raciocínio, nada como o inexaurível cabedal de conselhos maternos: “Minha mãe já dizia que na mesa em que come um, comem dois; na mesa em que comem dois, comem quatro; e na mesa em que comem quatro, comem oito”. Nada de exagero. No evangélico milagre da multiplicação dos pães e peixes, onde come um, comem milhares.
Não é a primeira vez que o presidente Lula, em viagem pelo exterior, perdoa dívidas. Cada perdão tem um significado especial, assim como também têm significado especial outras aparentes obras de caridade que nos honram sobremaneira, como a doação de computadores, a ajuda com remédios e o anúncio de ações na área de saúde pública e por aí afora. Mas soa com algum sotaque demagógico a assertiva presidencial segundo a qual o governo brasileiro está tentando recuperar o tempo perdido em que (sic) presidentes só olhavam para o mundo desenvolvido, esquecidos daqueles que estão ligados historicamente com o povo brasileiro.
É natural que o hóspede queira agradar seu anfitrião. Mas, pelo quadro social que apresenta, o Brasil não está em condições de praticar tanta prodigalidade quanto aparenta. O próprio presidente Lula segredou ao ditador Omar Bongo que nos últimos 34 anos (nem se sabe porque a exata referência ao tempo) o número de pobres cresceu no Brasil, pois aqui “a riqueza não foi distribuída de forma justa”. Não somos, como asseverou, um país rico. O Brasil apenas tem potencial para ser rico.
Não se tem conhecimento de reivindicação do Gabão no sentido de que sua dívida fosse perdoada. Sabe-se, com certeza, que o Brasil é um grande devedor. Nossos esforços se perdem na ingente tarefa de pagar, todos os anos, um montão de dinheiro. Apenas em juros. Faz parte dos contratos que, conforme se diz também no governo petista, precisam ser honrados para que nossa imagem não suma ralo abaixo. Pagar dívida, entretanto, não gera emprego nem desenvolvimento. A menos que Lula pretenda usar isso de outra forma quando o Brasil tiver assento definitivo na ONU, o perdão das dívidas que vem concedendo a nada serve em seu discurso interno, onde o que funciona é o anúncio de mais impostos e sempre maior arrecadação. Seria muito bom que o governo de Lula usasse um pouco da caridade que ostenta em viagens pelo exterior para com os subalternos contribuintes. Seríamos, nós também, agradecidos, não pelo perdão concedido, mas pela graça da compreensão alcançada.