A fotografia digital e o ônus da prova

Estabelece o parágrafo 1.º do art. 385 do CPC que o valor probante da fotografia dependerá de estar acompanhada do respectivo filme negativo. Todavia, na fotografia digital a luz da cena fotografada é capturada analogicamente. Não há negativo. Desse modo, juntada aos autos a fotografia digital por uma das partes, não se lhe exige a apresentação de negativo.

Inegável que justamente por não se fazer acompanhar de outro meio probatório apto a revelar-lhe a integridade e idoneidade não há, em favor da fotografia digital, qualquer presunção de veracidade, tal como reconhece o art. 385, parágrafo 1.º, do CPC em relação à fotografia tradicional. Na espécie, não se aplica à fotografia digital o dispositivo em referência e, assim, não se lhe reconhece a presunção de validade probatória.

Descabe redarguir com a possibilidade de exigir-se, desde logo, da parte que pretende produzir a prova fotográfica pela via digital, a juntada do meio físico original em que capturada a cena fotografada.

Primeiro, porque tal providência não se revela suficiente a garantir segurança, autenticidade e integridade a essa pretensa prova, na medida em que “é extremamente fácil alterar a imagem digital, sem deixar desta operação qualquer vestígio (ou tornando-o quase imperceptível)”(1).

Além de que, exigência semelhante parece destoar do cotidiano pós-moderno, em que as imagens são apagadas do meio físico em que originalmente registradas tão logo transferidas para outros arquivos, sem falar na privação do uso de um bem ou no prejuízo financeiro que estaria sendo imposto à parte na eventual determinação de depósito de equipamento fotográfico ou celular em juízo, pelo tempo necessário à consecução de complexos exames periciais(2).

Uma vez não questionada pelas partes litigantes ou pelo juiz a conformidade da prova fotográfica digital com o fato ocorrido, é de ser reconhecido o valor probante desse meio atípico de prova, ainda que desacompanhado nos autos do meio físico em que originalmente registrado (art. 383 do CPC), ressalvando-se ao juiz, no momento da valoração das provas dos autos, conceder-lhe o valor que possa merecer, de acordo com sua conformidade com as demais provas produzidas nos autos e com o princípio do livre convencimento motivado.

Por outro viés, impugnada a fotografia digital juntada aos autos, cabe à parte que pretende se servir da prova atípica impugnada demonstrar por outros meios a sua adequação, validade e eficácia probatória, sua integridade material e a idoneidade ideológica.

Um juízo de certeza, ou ao menos a maior garantia possível de sua eficácia probatória muitas vezes somente pode ser obtida mediante exames periciais, por especialistas da área da tecnologia da informação, a ser determinada pelo juiz (art. 383 do CPC).

Lembram Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart tratar-se o processo do resultado da argumentação dialética e não da descoberta da verdade substancial. Assim, tem-se que a prova revela não uma certeza sobre o fato ocorrido, mas apenas uma das probabilidades sobre como o fato se deu.

Nesse contexto, exsurge a importância do discurso, da linguagem, do diálogo, da comunicação argumentativa, os quais pressupõem intersubjetividade, atraem outros postulados, como a moral e a história e constroem um “consenso discursivo”: a construção da verdade que se legitima pelo procedimento observado, de modo que, como prenunciava Siegfried Kracauer, “Para que a história seja representada, deve-se destruir a conexão meramente superficial oferecida pela fotografia”(3).

A admissão da fotografia digital como prova no processo perpassa a análise de questões como a autencidade, integridade e conteúdo, que tornam bastante complexo seu reconhecimento.

A fotografia digital pode ser utilizada com prova, porém, desde que observada sua real perspectiva de fabricação de uma realidade que pode ou não, conforme as circunstâncias, coincidir com a cena fotografada e com a verdade, como leciona Francisco Cardozo Oliveira(4).

Cumpre ao juiz assegurar a produção da prova fotográfica digital de modo a conferir a maior garantia possível de permear-se da racionalidade intersubjetiva e dialógica própria do processo, afastando-se o risco de uma cognição superficial.

Rejeita-se, desde logo, a assimilação liminar da racionalidade imagética no processo, na medida em que somente se concebe o processo na perspectiva da dialética, do consenso construído. À fotografia digital, portanto, não se reconhece validade probatória senão naquelas hipóteses em que corroboradas por outros meios de prova.

Esta, inclusive, parece ser a tendência refletida no Anteprojeto do Novo CPC que somente admite a força probatória da fotografia digital e das extraídas da rede mundial de computadores quando houver impugnação da sua autenticidade , se “apoiadas por prova testemunhal ou pericial” (art. 405, p. 3.º).

Dessarte, o juiz deve conferir à fotografia digital o valor probatório que merece diante das demais provas produzidas em cada caso concreto, sopesando-a com os demais meios probatórios, sempre, porém, na perspectiva de tratar-se de uma realidade pronta e acabada, que necessita da intersubjetividade do processo para desvendá-la e integrá-la ao mister do (des)cobrimento da verdade construída pela dialética processual.

Notas:

(1) DANTAS, Rodrigo Tourinho. A fotografia digital como meio probatório na perspectiva do formalismo-valorativo. Revista Trabalhista Direito e Processo. Ano 8. N.º 29, pág. 221.

(2) Idem, ibidem.

(3) KRACAUER, Siegfried. O ornamento da massa: ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009, pág. 67.

(4) OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Os limites da linguagem no processo: o sistema mídia e o sistema jurídico. GUNTHER, Luiz Eduardo. Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional. Curitiba: Editora Juruá, 2008, pág. 207.

Angélica Maria Juste Camargo
é mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Unicuritiba, especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo IBEJ; Especialista em Direito do Trabalho pelas Faculdades Integradas do Brasil. Atualmente é assessora da vice-presidência do TRT da 9.ª Região. Participante do Grupo de Pesquisa Tutela dos direitos de personalidade na atividade empresarial: os efeitos limitadores na constituição da prova judiciária, coordenado pelo Prof. Dr. Luiz Eduardo Gunther, junto ao Unicuritiba.

Grupos de WhatsApp da Tribuna
Receba Notícias no seu WhatsApp!
Receba as notícias do seu bairro e do seu time pelo WhatsApp.
Participe dos Grupos da Tribuna
Voltar ao topo