A formação de juízes como imperativo ético

A atuação do poder jurisdicional em decorrência do império do fenômeno da globalização tem assumido relevância nunca antes vista, sendo que as características do tempo que vivemos vêm modificando substancialmente o papel do direito, sobretudo na perspectiva da sua aplicação judiciária.

Nos últimos cinqüenta anos ocorreu uma intensa evolução e profunda transformação no poder jurisdicional. É um fenômeno onipresente, sem fronteiras e nacionalidade, provavelmente conexo à evolução das relações entre o estado e a sociedade.

A importância crescente da justiça, com a explosão dos pedidos, faz com que ela se transforme numa parte cotidiana do processo político. Nunca se fez tanto apelo à justiça e nunca o acesso esteve tão aberto, não parando de se alargar as funções que a democracia confia à justiça, parecendo ser ilimitadas.

À medida que o Poder Público torna-se mais intenso, a justiça descobre, sob a pressão de uma demanda crescente, novos domínios. Não há hoje nenhuma intervenção pública que possa ser subtraída da apreciação do juiz. Onde existe uma lei também existirá um juiz para interpretar e precisar os seus efeitos.

Hodiernamente, o juiz tende assim a se tornar uma espécie de maestro de orquestra, onde sua função consiste não só em resolver os litígios, mas também encontrar soluções aos problemas que as outras instituições não puderam resolver.

Além de uma função técnica científica, aos juízes se exige uma função axiológica, com a valoração das idéias que iluminam o direito. A sociedade espera da justiça o dever de defender a liberdade, aplacar as tensões sociais, de tutelar o meio ambiente, conter as tendências incoercíveis ao abuso do poder, de impor penas, de atenuar as diferenças entre os indivíduos, de defender os cidadãos desde o nascimento, casamento, divórcio e morte, etc…

As responsabilidades do juiz revelam-se cada vez mais acrescidas, desencadeando o fenômeno da jurisdicionalização e a crescente influência da justiça na vida cotidiana.

Concomitantemente à essa forte evolução, a concepção clássica do juiz, executor da vontade do legislador vem sendo abandonada. Percebe-se claramente nessa trajetória que a estrutura burocrática da magistratura começa a apresentar fissuras cada vez mais profundas. O papel de mero aplicador da lei vem sendo desmantelado paulatinamente pelo realismo jurídico, que ilumina a aproximação criativa do juiz à elaboração do direito.

Na sua nova função o juiz cria o direito, pois constrói normas que não estão nos códigos. Os juízes tornam-se depositários do direito que se torna o que é por eles feito.

O pensamento filosófico contemporâneo mais recente mostra a aplicação judiciária do direito, considerando o jurídico essencialmente na perspectiva do judiciário, como fazem John Rawls e Paul Ricoeur. A idéia do justo só se completa na aplicação da norma ao julgamento.

O julgamento é uma verdadeira norma jurídica, ainda que limitada às partes que estão obrigadas a cumprir. Nesse sentido a função judiciária revela sempre uma versão política. Por isso que o controle da sociedade sobre as razões que fundamentam a decisão judiciária é cada vez mais amplo, colocando em xeque o preparo do juiz.

Um dos maiores desafios que se propõe, hoje, para o Poder Judiciário é selecionar e formar bons magistrados, aptos a solucionar não só a lide processual, aquela que se revela no processo, mas o conflito sociológico, muito mais amplo e nem sempre possível de ser resolvido com a mera aplicação da lei.

A construção e solidificação do Estado Democrático do Direito depende em grande parte da qualificação do juiz. Neste contexto, perfila-se claramente a exigência de um profissionalismo forte, a partir da institucionalização sistemática da seleção, formação e promoção, do magistrado, fundadas em estruturas abertas de espírito não corporativo completamente vinculados aos termos do legislador constitucional.

O aumento do poder traz automaticamente o aumento de responsabilidade, transparência e independência, com o acréscimo das expectativas e das exigências em relação aos magistrados, no ato de julgar.

A legitimidade do poder decorre em boa parte da seleção dos melhores e da capacidade da magistratura para decidir em tempo real e de forma adequada, reclamando profunda consciência ética, competência, segurança, cultura e elevado sentido de alta responsabilidade.

A construção de uma identidade profissional sólida, com a formação profissionalizante institucionalizada que busque uma progressiva maturidade profissional, torna-se imperiosa.

Esse desafio se faz muito mais relevante no momento em que a Constituição Federal, em face da Emenda Constitucional n.º 45, atribui ao Poder Judiciário a integral responsabilidade pela seleção, preparação, aperfeiçoamento e promoção de magistrados.

A Reforma do Judiciário descreveu de maneira expressa as qualidades do juiz, como aquele capaz de assegurar a todos a razoável duração do processo e de implementar os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (inciso LXXVIII do art. 5.º da CF, acrescentado pela Emenda n.º 45/2004).

Além disso, elencou os atributos do juiz, como o desempenho, a produtividade, a presteza no exercício da jurisdição, além da freqüência e aproveitamento em cursos de Aperfeiçoamento (alínea ?c? do inciso II do art. 93 da CF, com a nova redação da Emenda n.º 45/2004).

Pela primeira vez, a escola da magistratura foi inserida no texto constitucional, denominando-a de Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (art. 105, parágrafo único, inciso I da CF).

A comissão constituída pelo presidente do STJ, para elaborar o primeiro documento da ENFAM, quando da elaboração do projeto inicial, partiu da premissa que ?a escola deverá ficar eqüidistante dos maiores males do Judiciário: a verticalização, comandada pelo critério de antigüidade, em todas as escolhas e determinações; e a politização, diante da incompatibilidade de defesa de interesses outros, senão os institucionais? (Escola da Magistratura: Ministra do STJ Eliana Calmon Alves, in Revista da Escola Nacional da Magistratura, n.º 2 outubro 2006, pg. 23).

A missão vai mais além do que reforçar os mecanismos imparciais de seleção e promoção, sendo a sua principal incumbência a adoção do sistema de formação profissional institucionalizada, com a elaboração de uma teoria de formação de magistrados.

A formação continuada não deve ser vista como uma obrigação, mais do que o aprofundamento das técnicas próprias à função, a confrontação dos elementos teóricos com a realidade das práticas judiciais, deve-se buscar a construção de um magistrado servidor de um direito que se origine na dignidade inviolável do ser humano, da supremacia da ética e dos direitos fundamentais.

O desafio é o de modificar o modelo dogmático da ciência jurídica, buscando um pensamento crítico de direito útil para a reflexão judicial, tentando descobrir quais as possibilidades e quais as formas que a função jurisdicional pode adotar a crítica jurídica para enfrentar os desafios contemporâneos.

O alargamento das atribuições dos juízes tem sido apontado como sinal de ?crise da jurisdição?, nascendo a indagação se a magistratura está preparada para as novas responsabilidades que começam a pesar sobre ela.

Sem escamotear a realidade, urge a tomada de consciência de que se passa rapidamente a uma outra etapa da modernidade e que importa compreender a crise judiciária e procurar os meios para superá-las.

O juiz poderá ser confrontado com problemas imediatos sob os quais o direito é silencioso, obrigando-o a exercer um papel de legislador e administrador sem ter sido anteriormente preparado.

Por isso a urgência da formação institucionalizada, com novos paradigmas de aquisição de conhecimentos, direcionados a ampliação da capacidade de pensar numa visão integrada e transdisciplinar.

A necessidade de se reinventar, na busca da eficácia, eficiência e efetividade de sua atuação, faz emergir a consciência da necessidade de um magistrado dotado de cultura aberta, com personalidade independente, responsável, sabedor, com espírito de serviço e de solidariedade, aberto à cultura e à vida.

A implantação de um sistema de formação de magistrados é indispensável para que sejam viáveis as transformações que hoje se reclamam do sistema judiciário.

A criação de um projeto institucional indicando que tipo de juiz se postula para a sociedade irá traduzir os objetivos, os métodos, os cronogramas e os recursos das diferentes ações pedagógicas.

A formação do magistrado constitui-se hoje um dever que ultrapassa a responsabilidade de cada magistrado, para ser também do Poder Judiciário, configurando-se numa exigência ética, num poder-dever indeclinável, face à extrema complexidade das interpelações que a sociedade dos nossos dias lhe colocam.

José Laurindo de Souza Netto é juiz formador.

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