O cinema nacional, superado, especialmente, o hiato da mesmice, do marasmo, e da pasmaceira impostas pelos anos de censura e repressão, inquestionavelmente, nos últimos vinte anos, tem se destacado pela melhora constante na qualidade de suas produções. Isso não é só resultado dos avanços tecnológicos, mas, também, da retomada dos investimentos no setor, do aumento da sensibilidade dos roteiristas, diretores e produtores que atuam no mercado nacional e, ainda, do considerável aumento na liberdade que a criatividade necessita. Percebe-se um indiscutível progresso na qualidade dos temas, roteiros, fotografia, trilhas sonoras, etc., enfim, das produções como um todo, realizadas nos últimos anos pela cinematografia brasileira.
No ano de 2007 a produção mais festejada, não inteiramente sem justo motivo, pois realmente nos parecer ter sido uma das boas produções do ano passado, foi a do filme ?Tropa de Elite? dirigido por José Padilha e protagonizado pelo ator Global Wagner Moura. Em uma época em que um dos temas sociais mais debatidos em nível nacional é o que se refere à segurança pública, ?Tropa de Elite? vem colocar em pauta, entre outras questões de similar relevância, a que se refere ao comportamento institucional de parte de uma das agências de criminalização secundária que atuam no Brasil, o Bope. Por si só, o debate provocado pelo filme ?Tropa de Elite?, que foi além da sua perspectiva estética e de entretenimento, já o torna útil, especialmente quando não se leva em conta apenas uma utilidade econômica e de entretenimento na produção. Muito se debateu sobre os inúmeros aspectos trazidos pelo filme. Muito se debateu sobre as perspectivas utilizadas para o combate da criminalidade.
No último dia 16 de fevereiro o filme ?Tropa de Elite? recebeu o Urso de Ouro, maior premiação do Festival de Berlim, fato este que traz, novamente, a discussão a respeito da produção, bem como, reacende o debate em torno da postura institucional adotada por setores encarregados de promover a segurança pública no Brasil. Bom é lembrar, ainda, que mesmo em Berlim a produção não passou incólume a adjetivação de fascista. O fascismo é sistema político nacionalista, imperialista, antiliberal e antidemocrático, liderado, inicialmente, por Benito Mussolini na Itália, e que tinha por emblema o feixe (em it., fascio) de varas dos antigos lictores romanos.
Salutar é não olvidar jamais, também, que o que mais surpreendeu, entretanto, a par das qualidades cinematográficas da película, foi o fato de que a sociedade nacional, em sua grande e desinformada maioria, transformou o Capitão Nascimento no novo herói nacional. Pelo menos é isso o que se sentia quando, nas salas de cinema, a platéia aplaudia os métodos autoritários utilizados pelo justiceiro, pago com dinheiro público, na persecução de seus objetivos e na convalidação dos seus conceitos pessoais acerca das questões relacionadas com a ?justiça?. Afinal, quando o tema é segurança pública, ficamos com a nítida percepção de que, para a sociedade em geral, títere dos meios de comunicação de massa, os fins justificam os meios. Hoje, mitigada a febre ?Tropa de Elite?, agora reacendida pelo Urso de Ouro, vemos na TV propagandas direcionadas ao público infantil com a celebre frase, ?pede pra sair 01!?, o que reforça a postura agressiva aceita pela sociedade nos métodos não só de combate à criminalidade, mas também, nas políticas de difusão do consumismo.
Sem dúvida nos parece que o referido filme é sim umas das boas produções levadas a efeito pela indústria cinematográfica nacional nos últimos anos. Isso, de certa forma, se comprova pelo grande alcance obtido pela obra que, mesmo antes de adentrar no circuito comercial nacional, já tinha sido vista por milhares de pessoas, ainda que de forma não lícita. Não entramos aqui no mérito da mensagem que o filme passou ou deseja/ou passar (se é que existiu ou existe tal desejo), pois esta mensagem varia segundo as perspectivas pessoais de cada um que assiste ao filme e é salutar que o conteúdo de uma obra artística enseje debates sobre as mais diversas perspectivas possíveis.
Neste espaço o debate deve estar contextualizado, afinal estamos no caderno Direito e Justiça.
?Tropa de Elite? foi além do que se poderia imaginar para uma obra cinematográfica, assim como já havia ido ?Cidade de Deus?. É importante anotar que não foram poucas as Faculdades de Direito que usaram como mote, para fomentar debates ligados ao Direito (Direitos Humanos, Direito Constitucional, Direito Penal e Direito Processual Penal), além de outros, relacionados com a filosofia e a sociologia, o tema ?Tropa de Elite?. Quase tudo se falou sobre os métodos utilizados por grupos de ?elite? como o Bope, bem como sobre os reflexos positivos (se é que existem) e negativos produzidos por suas ações. Isso se deve, em parte, ao fato de que a face mais aparente do sistema de criminalização secundária é aquele executado pelas polícias ostensiva e judiciária. De outro lado, se deve ainda, ao fato de que quem narra a história é um capitão do Bope.
Contudo, não podemos esquecer, que há no sistema de criminalização secundária a participação de outras instituições que também atuam de forma direta neste processo. Instituições que, também, têm suas tropas de ?elite?. Instituições como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia Civil, os advogados etc. De forma geral, em quaisquer instituições, há aqueles que entendem que os fins justificam os meios. O filme não nos parece querer dizer que os fins justificam os meios. Contudo, essa é uma constatação que o filme traz, dependendo do grau de civilidade e humanismo daquele que o assiste. A idéia que o filme pode nos passar é a de que é (ou foi) o Bope uma tropa de ?elite? por ser composta por pessoas, in thesi, incorruptíveis, que estão em guerra contra o tráfico de drogas no Rio de Janeiro e contra membros corruptos pertencentes à sua própria instituição. Em uma guerra, acreditam alguns, vale tudo.
O Dicionário Eletrônico Aurélio Século XXI, define o verbete elite como sendo ?1. O que há de melhor em uma sociedade ou num grupo; nata, flor, fina flor, escol. [Cf. flor (5).]; 2. Sociol. Minoria prestigiada e dominante no grupo, constituída de indivíduos mais aptos e/ou mais poderosos?.
Fica, na sociedade brasileira, a idéia de que qualquer elite teria justificadas as suas ações, estivessem ou não as mesmas conformadas com a Constituição ou, ainda, com o Direito Processual Penal, em razão do objetivo que perseguem. Afinal, rememore-se que, o nosso ainda vigente Código de Processo Penal é inspirado na legislação processual italiana produzida na década de 1930, ou seja, no auge do regime fascista. A presunção de culpabilidade é a tônica.
O que se vê, quando a sociedade transforma o capitão Nascimento em herói, é uma verdadeira inversão de valores. Esta inversão encontra-se em absoluto desacordo com as perspectivas instituídas pela Constituição da República editada em 1988, onde o Estado Democrático de Direito é a regra e o estado ou situação jurídica de inocência é quem deve dar o tom do sistema. Sobre o viés da legislação fascista italiana autoriza-se às tropas de elite das instituições a burlar, com suas interpretações casuísticas, às regras constitucionais. Aplica-se, não só no plano do Direito Penal Material, mas, especialmente, no campo do Direito Processual Penal o Direito Penal do Inimigo.
Não mais se pode admitir que as ações de membros das agências de criminalização secundárias, especialmente parte do Poder Judiciário e parte do Ministério Público, continuem a persistir em valorar as condutas humanas, única e exclusivamente em razão de seus ?standards? pessoais ou institucionais. Há que se identificar a filosofia do sistema e, desta forma, conformar suas ações ao viés definido pela CF.
Vale lembras que no próximo dia 28 de fevereiro a OAB Paraná, por meio da Comissão de Direitos Humanos, promove o seminário Direitos Humanos e Violência Institucional: uma leitura interdisciplinar a partir do filme Tropa de Elite. Os painéis serão compostos por ilustres operadores do Direito entre os quais destacamos os professores Juarez Cirino dos Santos, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Pedro Bode. Com certeza teremos mais uma oportunidade de requentar o tema.
Haroldo César Náter é professor de Direito Processual Penal, doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidad Del Museo Social Argentino. haroldonater@ufpr.br
