Em 4 de outubro de 2007 o STF foi palco de um julgamento histórico. Após longo e profundo debate, o Tribunal decidiu que o abandono, pelo parlamentar, da legenda pela qual foi eleito, tem como conseqüência jurídica a extinção do mandato.
Até então, vinha sendo adotada a pacífica orientação do STF, no sentido de que a infidelidade partidária não deveria ter repercussão sobre o mandato parlamentar (MS n.º 20.927/DF, Rel. Min. Moreira Alves, julg. 11/10/1989). A maior sanção que a agremiação partidária poderia impor ao filiado infiel era a exclusão de seus quadros.
Embora referido entendimento jurisprudencial tenha justificação em um contexto histórico específico, a realidade partidária observada no Brasil no último decênio fez transparecer a inadequação da interpretação sobre o princípio da fidelidade partidária que se vinha adotando ao longo de todos esses anos.
Essa constatação ficou patente no julgamento das ADI n.ºs 1.351 e 1.354 (7/12/2006), Rel. Min. Marco Aurélio, quando foi discutida a constitucionalidade da ?cláusula de barreira?.
Na ocasião, fiz questão de expor posicionamento pessoal sobre o tema, afirmando a necessidade da imediata revisão do entendimento jurisprudencial adotado pelo Tribunal no MS n.º 20.927.
É inegável que o sistema eleitoral de feição proporcional, que corresponde à nossa prática política desde 1932, vem apresentando significativos déficits e emitindo sinais de exaustão.
Recentemente, o país mergulhou numa das maiores crises éticas e políticas de sua história republicana, crise esta que revelou algumas das graves mazelas do sistema político-partidário brasileiro, e que torna imperiosa a sua imediata revisão.
A crise tornou evidente, para todos, a necessidade de que fossem revistas as regras então vigentes quanto à fidelidade partidária.
Se considerarmos a exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade e a participação do voto de legenda na eleição do candidato, tendo em vista o modelo eleitoral proporcional adotado para as eleições parlamentares, parece certo que a permanência do parlamentar na legenda pela qual foi eleito torna-se condição imprescindível para a manutenção do próprio mandato.
Assim, ressalvadas situações específicas decorrentes de ruptura de compromissos programáticos por parte da agremiação, perseguição política ou outra situação de igual significado, o abandono da legenda, como decidiu o STF, deve dar ensejo à extinção do mandato.
No regime de democracia partidária, os candidatos recebem os mandatos tanto dos eleitores como dos partidos políticos. A representação é ao mesmo tempo popular e partidária. E, como ensinou Duverger, ?o mandato partidário tende a sobrelevar o mandato eleitoral?. Nesse contexto, o certo é que os candidatos, eles mesmos, não seriam detentores dos mandatos.
Os mandatos pertenceriam aos partidos políticos. As vagas conquistadas no sistema eleitoral proporcional pertencem às legendas. Esta é uma regra que decorre da própria lógica do regime de democracia representativa e partidária vigente em nosso país.
Nessa perspectiva, não parece fazer qualquer sentido, do prisma jurídico e político, que o eventual eleito possa, simplesmente, desvencilhar-se dos vínculos partidários originalmente estabelecidos, carregando o mandato obtido em um sistema no qual se destaca o voto atribuído à agremiação partidária a que estava filiado para outra legenda.
Essa interpretação decorre de própria realidade partidária observada no Brasil após a Constituição de 1988. É preceito básico da hermenêutica constitucional o de que não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada. Interpretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo ou integrá-lo na realidade pública (Häberle, Peter. ?Zeit und Verfassung?. In: Probleme der Verfassungsinterpretation, org: Dreier, Ralf/Schwegmann, Friedrich, Nomos, Baden-Baden, 1976, p. 312-313).
Na realidade política atual, a mudança de legenda por aqueles que obtiveram o mandato no sistema proporcional constitui, sem sombra de dúvida, uma clara violação à vontade do eleitor e um falseamento grotesco do modelo de representação popular pela via da democracia de partidos.
É preciso ter em mente que a fidelidade partidária, ao impor normas de preservação dos vínculos políticos e ideológicos entre eleitores, eleitos e partidos, tal como definidos no momento do exercício do direito fundamental do sufrágio, condiciona o próprio funcionamento da democracia. Trata-se, portanto, de uma garantia fundamental da vontade do eleitor.
O transfuguismo ou, na linguagem vulgar, o troca-troca partidário, contamina todo o processo democrático e corrompe o funcionamento parlamentar dos partidos, com repercussões negativas sobre o exercício do direito de oposição, direito fundamental dos partidos políticos.
A decisão da Suprema Corte, portanto, constitui um marco em nossa história republicana, no sentido da consolidação da democracia e da efetivação dos direitos políticos fundamentais. O maior beneficiado dessa decisão, sem sombra de dúvida, é o cidadão-eleitor.
Gilmar Mendes é vice-presidente do Supremo Tribunal Federal; presidente do Conselho Nacional de Justiça; professor de Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília-UnB; professor de Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público IDP; mestre em Direito pela Universidade de Brasília – UnB (1988), mestre em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha (1989); doutor em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha – RFA (1990). Membro Fundador do Instituto Brasiliense de Direito Público IDP. Membro do Conselho Assessor do ?Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional? Centro de Estudios Políticos y Constitucionales – Madri, Espanha. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Membro da Academia Internacional de Direito e Economia – AIDE.