A (falta de) legitimidade do Estado na aplicação da pena de morte

O tema é antigo. Desde as mais priscas eras, a humanidade debate acerca da mais severa das punições: a pena de morte. No Brasil, sob o Império de D. Pedro I, o Código Criminal de 16 de dezembro de 1830, em seu art. 40, previa uma modalidade de pena capital: a forca. Entrementes, ao longo da história, apesar das idas e vindas do legislador, observa-se que o ordenamento jurídico, aos poucos, foi dissolvendo o rigor das penas, acabando por culminar na absoluta expurgação da pena de morte do direito brasileiro. Hodiernamente, o art. 5.º, inciso XLVII, alínea "a", contempla a total proteção ao direito à vida (salvo em caso de guerra declarada).

Apesar de antigo, o debate sobre a pena de morte é constantemente renovado a cada nova execução no estrangeiro. Na atualidade, cerca de 170 (cento e setenta) países adotam a pena de morte. Os Estados Unidos, quiçá, sejam palco das mais acirradas controvérsias sobre o assunto: cerca de quarenta estados norte americanos reconhecem juridicamente a pena capital. Um deles é a Califórnia, governado pelo astro do cinema, o ator Arnold Schwarzenegger. Na madrugada do dia 19, próximo, passado, Donald Berdslee recebeu uma injeção letal, após Ter seu pedido de clemência negado pelo "Exterminador do Futuro".

O acontecimento reavivou os debates sobre o assunto. Houve protestos em frente à prisão onde se sucedeu à execução. Na Áustria, país natal de Schwarzenegger, ativistas realizaram manifestações contra a pena de morte.

Há quem defenda a pena de morte. Os argumentos são conhecidos: profilaxia social, impossibilidade de ressocialização do condenado, exemplaridade, intimidação, etc. O pior de tudo é que esses argumentos encontram guarida na sociedade que, em sua maioria, aplaude a pena de morte.

São argumentos falhos.

Dentre inúmeras razões, é possível apontar – para ficar com apenas uma delas – a falta de legitimidade do Estado para a aplicação da pena de morte. Essa discussão pode ser desmembrada em duas variantes: uma política, outra filosófica.

Politicamente falando, o Estado nasce da renúncia de parcela da autonomia individual de cada cidadão que lhe outorga o poder de gerenciar os interesses gerais em nome da coletividade. Mas até que ponto a renúncia dessa autonomia individual autoriza o Estado a tolher o bem jurídico mais precioso do cidadão – a vida? Será que essa parcela de liberdade renunciada em nome do Estado é tamanha a ponto de autorizar-lhe a própria morte? Que seja. Suponha-se que sim. E aí entra outra ordem de indagação: se o indivíduo pode renunciar sua vida ao Estado, poderia também renunciá-la ao particular. Mas não pode. A vida é um bem jurídico indisponível e, portanto, irrenunciável, seja ao Estado, seja ao particular. Ainda que o cidadão concorde com a sua própria morte, o consentimento da vítima não tem o condão de afastar, por si só, a ilicitude do homicídio. Como bem indagou o jusfilósofo iluminista, Beccaria(1): "será o caso de supor que, no sacrifício que faz uma pequena parte de sua liberdade, tenha cada indivíduo querido arriscar a própria existência, o mais precioso de todos os bens?" Jamais! Ainda que a maioria da população possa querer a implementação da pena capital, como bem advertia Evandro Lins e Silva(2), "há certos temas que não podem estar sujeitos às reações emocionais, por vezes incontroláveis da multidão". Com efeito, não merece prosperar o argumento de que a vontade da maioria emprestaria legitimidade ao Estado para aplicação da pena de morte. Democracia nem sempre corresponde à maioria. É preciso que o ordenamento jurídico esteja blindado contra impulsos e paixões tumultuosas de uma massa, vulnerável às comoções, que ameaçam conturbar a serenidade necessária ao legislador. Como bem vaticinou Vicent Moro Giaferri(3), a respeito da opinião pública, "é ela [a opinião pública] que ao pé da cruz gritava: `Crucificai-o!’. Ela, com um gesto de mão, imolava o gladiador agonizante na arena. É ela que aplaudia aos autos da fé da Espanha, como ao suplício de Calas. É ela enfim que desonrou a Revolução francesa pelos massacres de setembro, quando a farândola ignóbil acompanhava a rainha ao pé do cadafalso. A opinião pública está entre vós, expulsai-a, essa intrusa… Sim, a opinião pública, esta prostituta, é quem segura o juiz pela manga". Daí que o legislador (que elabora a lei em abstrato) e o juiz (que concretiza a norma no plano empírico) não podem se deixar levar pelas impressões de uma opinião pública manipulável, mormente nos dias atuais, por veículos de comunicação em massa. Não se pretende, em absoluto, desrespeitar a opinião da maioria. Mas certas garantias, individuais não podem ser renunciadas, em nome da própria democracia e da manutenção do Estado Democrático de Direito.

No plano filosófico, a legitimidade do Estado, em aplicar a pena de morte entra em xeque mais uma vez. É aí que se insere a angústia existencialista, conceituada por Heidegger(4) e desenvolvida por Sartre(5), que na definição de Kierkegaard(6) é chamada de "angústia de Abraão". Ocorre que, de acordo com a Sagrada Escritura, Abraão foi ordenado, por um anjo a sacrificar o próprio filho. Mas poderia ele se perguntar, antes de mais nada: "trata-se realmente de um anjo, e sou eu realmente Abraão? Quem é que me prova isso". Para o aplicador da lei, no recôndito de sua consciência mais íntima, a imposição da pena de morte significa o extremo de uma angústia existencial, que dilacera a alma num paradoxo entre a legitimidade jurídica e a legitimidade espiritual de alguém determinar a morte de um semelhante, como também ressaltou o professor René Ariel Dotti(7) em lúcida e memorável palestra proferida no Ciclo de Conferências Sobral Pinto – Pena de Morte no Brasil.

Enfim, seja no âmbito político, seja na esfera filosófica, o Estado carece de legitimidade para a aplicação da pena de morte. Trata-se, a pena de morte, de uma afronta ao direito à vida, ao Estado Democrático de Direito e às liberdades públicas e individuais conquistadas pelo cidadão.

Notas

(1) BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. de Evaristo de Moraes. 6. ed. Atena: São Paulo.

(2) SILVA, Evandro Lins e. Palestra proferida no "Ciclo de Conferências Sobral Pinto – Pena de Morte no Brasil", realizada em 20-8-91, no auditório do Edifício Castelo Branco, em Curitiba. In Pena de Morte. Rio de Janeiro: Destaque, pp. 15-25

(3) Apud Evandro Lins e Silva. A Defesa tem a Palavra. Aide Edit., p. 33.

(4) HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

(5) SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Trad. de Paulo Perdigão. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

(6) KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. Trad. De Adolfo Casais Monteiro. 2. ed. Porto: Tavares Martins, 1947.

(7) DOTTI, René Ariel. O Ocaso de um Mito. "Ciclo de Conferências Sobral Pinto – Pena de Morte no Brasil", realizada em 20-8-91, no auditório do Edifício Castelo Branco, em Curitiba. In Pena de Morte: Rio de Janeiro: Destaque, pp. 27-38.

Adriano Sérgio Nunes Bretas é recém-formado pela Faculdade de Direito de Curitiba.

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