É a dicção do art. 93, ?caput?, da nossa Carta Magna: Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
Na redação do dispositivo, percebe-se que o vocábulo ?princípios? é utilizado no sentido de ?diretrizes?, tanto que vários deles vêm sendo aplicados desde a promulgação da nova Constituição, independentemente da Lei Complementar que disporá sobre o Estatuto da Magistratura (atualmente, quinze princípios são alinhados no art. 93 da CF).
Na realidade, essas diretrizes são de observância obrigatória ao legislador, mas não normas que, para sua efetiva aplicação, dependam de providência legislativa.
São normas de eficácia e aplicabilidade imediata.
A exemplificar, nunca se questionou, antes da EC 45/04, dependessem de regulamentação pelo Estatuto da Magistratura as normas (?princípios?) que estabeleceram pressupor a promoção do magistrado por merecimento ?dois anos de exercício na respectiva entrância e integrar o juiz a primeira quinta parte da lista de antigüidade desta, salvo se não houver com tais requisitos quem aceite o cargo vago? (inc. II-b, art. 93/CF) e a que, na apuração da antigüidade, ?o tribunal somente poderá recusar o juiz mais antigo pelo voto de dois terços de seus membros? (inc. II-d, art. 93/CF).
Mesmo a acirrada discussão, logo à partida da vigência da nova Carta Fundamental, acerca da expressão ?classe de origem? contida no art. 93, III, da CF (antes da extinção dos Alçadas pela EC 45/04), jamais foi evitada por estar na dependência de Lei Complementar que viesse traduzir seu significado.
Qual a dificuldade enfrentada pelos tribunais estaduais com relação à norma (?princípio?) que estatui ser dever do magistrado titular residir em sua respectiva comarca (art. 93, VII, da CF)? Foi preciso esperar o Estatuto da Magistratura para definir o que seria ?residir? ou esclarecer o que seria ?titular? ou ?comarca??
O art. 93, IX, da Carta Magna (publicidade dos julgamentos e fundamentação de todas as decisões judiciais, sob pena de nulidade), que também é uma diretriz (?princípio?), deixou de ser aplicado por estar a depender de regulamentação? Ao revés, sua aplicação se deu de pronto, sendo demasiadamente mencionado nas decisões dos tribunais brasileiros.
Ivo Dantas põe em destaque que, ao lado dos princípios fundamentais, existem os princípios gerais ou setoriais, direcionados para determinado setor do ordenamento constitucional: Estes Princípios Gerais ou Setoriais, por sua vez, são igualmente superiores às normas, porém inferiores aos Princípios Fundamentais; embora tragam consigo, em relação ao setor a que se referem, a obrigatoriedade de que tanto o seu conteúdo quanto a interpretação que se ofereça a qualquer norma igualmente setorial) deverão estar subordinados ao conteúdo dos respectivos princípios (setoriais). E cita ele o exemplo do setor tributário da nossa Carta Magna: os Princípios Gerais utilizados com relação ao Sistema Tributário Nacional ou aqueles outros voltados para a Atividade Econômica são vinculadores das normas que dizem respeito a cada um dos setores do documento constitucional (?Constituição e Processo?, vol. 1, Curitiba: Juruá, 2003, p.149/150).
Portanto, como já enfatizado, o nosso constituinte, no setor judicial (art. 93/CF), ao referir-se e ao alinhar princípios, fixou requisitos e diretrizes a serem obrigatoriamente contempladas no Estatuto da Magistratura.
Nessa linha de entendimento, o Supremo Tribunal Federal já proclamou: As normas inscritas no artigo 93 da Constituição da República muito mais traduzem diretrizes, de observância compulsória do legislador, do que regras dependentes, para sua efetiva aplicação, de ulterior providência legislativa. A eficácia e a aplicabilidade das normas consubstanciadas no art. 93 da carta Federal não dependem, em princípio, para que possam operar e atuar corretamente, da promulgação e edição do Estatuto da Magistratura? (MC/ADIN 189-2/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, j. 18.04.90).
Na mesma Corte Suprema, mesmo entendimento se registrou no HC 67.480-RS, Relator o Ministro Octávio Galotti: (…) O mesmo sucede com o art. 93, onde se arrolam princípios a serem observados em lei complementar de iniciativa do Supremo Tribunal Federal (Estatuto da Magistratura), sendo, porém, desde logo, imperativa a obediência de tais regras, cuja eficácia não fica a depender de votação de lei complementar.
Ainda no STF, no julgamento da ADIN 189/MG (a ementa antes transcrita se refere à cautelar), do voto do Relator, realce-se: (…) Tais regras muito mais traduzem diretrizes, de observância compulsória pelo Congresso nacional, quando da elaboração do Estatuto da Magistratura, do que normas dependentes, para sua efetiva aplicação, de ulterior providência legislativa. Continua: A eficácia e a aplicabilidade das normas consubstanciadas no art. 93 da carta Federal não dependem, portanto, para que possam operar e atuar concretamente, da promulgação e edição do Estatuto da Magistratura. Constituem, na realidade, pressupostos condicionadores da própria ação normativa do Congresso nacional, que não poderá prescindir, na concretização do comando constitucional referido, dos princípios nele reclamados (ADIN 1892/600).
Nessa linha, não há motivo para entender-se como não ser auto-aplicável a diretriz contida no inc. XI do art. 93 da CF, com a redação que lhe foi dada pela EC 45/04: nos tribunais com número superior a vinte e cinco julgadores, poderá ser constituído órgão especial, com o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o exercício das atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno, provendo-se metade das vagas por antigüidade e a outra metade por eleição pelo tribunal pleno.
Do dispositivo que, para alguns, depende de regulamentação, extraem-se as lógicas inferências: a) – somente os tribunais com número superior a vinte cinco julgadores podem discutir se constituirão ou não o órgão especial; b) – o órgão especial poderá ter, nesses tribunais, o mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco julgadores; c) – a competência do órgão especial, se criado, se resumirá nas atribuições administrativas e jurisdicionais delegadas da competência do tribunal pleno; d) – a forma de provimento das vagas do especial: metade por antigüidade e a outra metade por eleição do tribunal pleno.
De conseguinte, e como as regras de competência, mormente as fixadas em norma constitucional, devem ter imediata aplicação, e na perspectiva democrática da Reforma do Judiciário realizada, em primeira parte, pela Emenda Constitucional 45/04, a primeiríssima providência que os tribunais brasileiros deveriam ter tomado (não se tem conhecimento de algum tribunal estadual que o tenha feito) seria a de convocar os tribunais plenos para decidir se constituiriam ou não órgãos especiais.
Se esses fossem constituídos, de imediato deveriam os plenos deliberar sobre sua competência (delegação), sem que, para tanto, fossem necessárias reformas regimentais ou outras em legislações infraconstitucionais. Afinal, a diretriz é constitucional e contém regra de competência, e atos administrativos seriam suficientes para implantá-la.
Que regulamentação seria necessária, pelo Estatuto da Magistratura, para a aplicação do inc. XI da CF? Definir o que é ?competência delegada?? Esclarecer como se realiza a eleição para o órgão especial (esclarecimento necessário somente aos que não aceitam a democracia no Judiciário)? Explicitar o que vêm a ser ?mais antigos julgadores? ou a regra matemática do que vem a ser ?metade??
É complicado entender que o órgão especial terá como seu Presidente o Presidente do Tribunal de Justiça, esteja ele dentre os mais antigos ou não, daí a sugestão de número ímpar da própria CF? (Alguns não se acostumam com a idéia de que todos os desembargadores do pleno possam ser candidatos à Presidência! O sistema atual, de os mais antigos serem candidatos, advém de uma LOMAN assinada por Ernesto Geisel e Armando Falcão!)
Que dificuldade existe em discernir que o especial será composto, para além do Presidente, de uma metade com os mais antigos e a outra com os eleitos? Ou será que existirão critérios para a eleição diferentes do que se conhecem? Ou a cúpula diretiva, além do Presidente, deverá compor obrigatoriamente o órgão especial? (Se estiverem dentre os mais antigos ou na metade eleita, nenhuma dificuldade existirá a respeito!).
O grande problema é a democracia.
O conservadorismo do Poder Judiciário está a impedir que essas regras se apliquem desde logo. (Faça-se justiça: os TRTs da Bahia e de São Paulo já implantaram as novas regras!)
Os órgãos especiais, que vêm centralizando o poder de administrar a justiça, ainda não se acostumaram com a idéia de que as regras mudaram. Receberão, doravante, competência dos plenos, órgãos superiores de todos os tribunais. E ainda que haja resistência, isso inevitavelmente ocorrerá, e a História julgará as atitudes dos refratários ao sistema democrático implantado no âmbito do Judiciário.
José Maurício Pinto de Almeida é desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, professor emérito da Faculdade de Direito de Curitiba e professor de Organização Judiciária da Escola da Magistratura do Paraná.