Festival de Curitiba

A doença de amar

Com a plateia reunida, ingressos esgotados e os três toques do sinal, apagam-se luzes do Teatro Paiol. Era chegada a hora de suscitar momentos da vida da lusitana e homenagear Florbela Espanca, autora, artista e poetisa portuguesa. “Desalinho” consiste em uma apresentação primorosa com um roteiro intrigante, inspirado na vida e nas obras literárias da portuguesa Florbela.

Autora de textos polêmicos, como os de “Assassinas por Amor” (Prêmio Miryam Muniz/Funarte, 2012), “Eles não Usam Tênis Naique” (premiada pelo Instituto Ford, 2003) e “Tempo de Solidão” (premiada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, 2009), Marcia Zanelatto inova sem perder a ousadia em seu mais novo espetáculo com um tema forte: o amor entre irmãos.

De acordo com Márcia, o fato da escolha do tema do amor entre irmãos ser primordial foi porque há o diálogo relacionado a esse momento da vida da poetisa portuguesa.

“Como teatro, preferi criar uma personagem, a Mariana, que pudesse dialogar exatamente com esse aspecto da vida de Florbela. A personagem é apaixonada pelo próprio irmão, chega ao delírio, e acaba por se confundir com a própria Florbela, assim como a poetisa. É uma história de dosagem de problemas, do constante conflito entre o sentimento do amor e da proibição de amar. O sentimento de um personagem que se confunde com a artista fundamenta a dramaturgia de “Desalinho”, afirma.

No elenco, Carolina Ferman, o músico Gabriel Vaz e a atriz convidada Kelzy Ecard arrancaram suspiros de comoção da plateia. A peça se passa em três planos (passado, presente e delírio), no qual o fundamental da narrativa se encontra em um hospital psiquiátrico. Lá, Mariana se encontra com uma enfermeira.

Enquanto a enfermeira está blindada para a vida, tem uma postura extremamente controlada, o avental do hospital serve quase como exclusão de toda essa liberdade – que é a loucura -, Mariana se encontra no ápice de sua felicidade, da sua vontade de viver, da sua não-lucidez.

O encontro dessas mulheres forma um grande contraste na dramaturgia e compõe o clímax da apresentação. Mariana, no limite do uso de sua potência, se sentindo profundamente viva, contra a enfermeira protegida e anestesiada na vida. Como já era de se esperar, este encontro é intenso, pois Mariana convoca a enfermeira ao amor, a vida e a liberdade.

Com uma interpretação brilhante e encantadora, “Desalinho” consiste em tratar sobre as possibilidades do amor existentes nos seres humanos. Ao longo da mostra, é possível a percepção tanto de uma história lírica, como também épica e dramática que, de certa forma, compõe uma união incomum no teatro contemporâneo.

Os planos feitos em “Desalinho” – passado, presente e delírio – se entrelaçam de uma maneira não cronológica e não causal, e isso faz com que a percepção e o sentido da peça sejam percebidos em fragmentos.

Diante desse amor dos irmãos, vemos uma história de amor verdadeiro, possível e impossível, com uma verdade e sensatez muito além dos julgamentos morais. “A dramaturgia fala de lugares imensuráveis em uma pessoa, algo que nem a cultura, nem a história e nem a sociedade conseguem conter. É uma grande ode ao amor, de todas as formas que se pode amar. É uma ode à vida e à liberdade”, explica Marcia.

Na opinião de Thelma Lima, a trama serve como uma reflexão aos costumes atuais da sociedade. “Me interessei porque a apresentação reforça que a vida é curta demais para certas limitações que nós insistimos em acreditar. A peça tratou muito do tema sobre o quanto precisamos viver, precisamos forçar esses limites impostos pela sociedade, mas também serve para contemplar o ser humano e os sentimentos verdadeiros que nele existem”, adverte.

Composta por fados, estilo musical português, a trilha é assinada por Alfredo Del-Penho e executada pelos atores, compondo e interpretando aos poucos a atmosfera lusitana. A certeza do reconhecimento pôde ser visto no final da apresentação: ter todo o público os aplaudindo de p&e,acute;.