Ao escrever o livro sobre A dívida divina, Marcos Lanna disse ter o objetivo de contribuir para um enfoque estruturalista da vida social nordestina e, ao mesmo tempo, oferecer o quadro conceitual para a construção futura de uma teoria geral da patronagem naquela região. Sua pesquisa de campo, realizada entre fevereiro de 1989 e janeiro de 1990, acompanhou o ciclo anual de São Bento do Norte no Nordeste brasileiro, município que tinha 10 mil habitantes, de organização social tipicamente sertaneja.

Se o projeto de DaMatta (1973) havia sido o de notar a presença da noção indiana de hierarquia na realidade brasileira – noção que se institucionaliza em ambiente indiano e estudada por Louis Dumont. Lanna objetivou expandir esse projeto por meio da consideração da política econômica. Seu esforço centrou-se na descrição das trocas centradas na figura “do patrão” e tomou o que DaMatta chamou de domínio de casa para situá-la no contexto das relações dos empregados e trabalhadores, do político e dos eleitores, do prefeito e da população de um município, com a finalidade de entender o entrelaçamento dos aspectos econômico, político e religioso da autoridade patronal.

Sobre a organização da agricultura no Nordeste brasileiro e no Brasil, o autor citou três organizações básicas: monocultura de exportação (grande propriedade), fazendas de gado (grandes propriedades) e pequena produção (campesinato). A modernização da agricultura, iniciada na dedada de 70, teria aumentado a participação de pequenos e médios proprietários voltada para o mercado interno. Como etnógrafo, Lanna afirma ter buscado entender como ocorria o abastecimento do mercado interno em crescimento pelos camponeses que não concebiam a terra, o trabalho ou o produto da lavoura apenas como mercadorias. O principal questionamento do autor: qual a natureza específica da hierarquia no Nordeste brasileiro?

Lanna enfatizou que tanto na costa nordestina quanto no sertão os patrões agiam como se os trabalhadores estivessem sempre endividados, como se tivessem o monopólio dos contatos sociais e manipulando as trocas que resultavam em salários baixos e acumulação de capital. Quanto à morada, não se referia somente à casa e ao pedaço de terra que o proprietário “dava” para aqueles que trabalhavam sua terra, mas também à oferta de emprego nos limites da propriedade.

Lanna comentou que a oferta de trabalho feita pelos senhores, considerada uma dádiva, devia ser entendida no contexto de situação de controle da posse da terra por poucos e da existência de uma força de trabalho numerosa. Ou o morador assumia a modalidade de condição, que era o oferecimento, por exemplo, de dois dias por semana de trabalho como reconhecimento pelo direito à casa, que funcionava como prestação, ou assumia a modalidade de “foro”, pelo qual uma taxa anual era cobrada em dinheiro pelo uso da terra.

Ao tratar dos aspectos da vida ritual de São Bento, Lanna analisa as festas, consideradas ritos de fertilidade. A cada ano o padre elegia um festeiro que escolhia foliões. Estes passavam de dois a três meses recolhendo esmolas, dinheiro ou comida. Em São Bento, a coleta se constituía de ovos, frangos, cocos, inclusive com a participação dos pobres.

Os leilões ocorriam nas praças centrais e se caracterizavam pela competição quanto à generosidade dos lances, e pelo prestígio que se acumulava na capacidade de pagar os preços mais altos e arrematar o que era leiloado, compra que era dádiva, pois era dada ao padre. Lanna observou que uma festa era considerada bem sucedida, se contasse com muitas pessoas de outros locais, se o baile fosse até o amanhecer e se levantasse grande soma de dinheiro para a Igreja. Buscava-se estabelecer um laço sagrado com um santo, mediado pela figura do patrão que representava os domínios da produção de mercadorias.

O compadrio introduziu a possibilidade de recrutar compadres e deles esperar assistência “caridosa”. Então, também aí, pessoas pertencentes a domínios diferentes se relacionavam como afins. O autor relatou que as duas características centrais do compadrio eram a não escolha dos pais como padrinhos e a escolha dos padrinhos fora da família elementar, sendo uma forma de aliança, porque gerava laços interfamiliares. A figura do padrinho se associava à do patrão, ao dinheiro, ao mercado, à força, à cidade, ao chefe religioso e à cultura oficial.

O autor finalizou dizendo que no caso de São Bento o mercado era absorvido por estruturas não-capitalistas das comunidades locais. Do ponto de vista da lógica não-capitalista, as trocas assimétricas fundavam instituições como o compadrio. Do ponto de vista do capitalismo, instituições como o compadrio e as crenças tradicionais, em geral, não eram apenas manipuladas mas eram constitutivas da própria vida social. O sistema não-capitalista foi definido pelo autor como aquele que se constituiu por meio das trocas de dádivas.

Zélia Maria Bonamigo é jornalista, especialista em Mídia e Despertar da Consciência Crítica. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do ParanáE-mail:

zeliabonamigo@uol.com.br
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