A crise debelada

A fé remove montanhas, mas mesmo que a tenhamos de sobra, se há à disposição um túnel ou um desfiladeiro, nada justifica seu desperdício.

A fé de Lula, que ele expressou num discurso na Confederação Nacional das Indústrias, em cerimônia do Senai, invocando Deus como única força capaz de impedir que o Brasil assuma o papel que merece, não é dispensável, mas para conseguir esse quase milagre evidentemente não precisa descartar o concurso do Congresso e do Judiciário. Mas ele referiu-se aos outros dois Poderes como incapazes de impedi-lo nos seus intentos de realizar as reformas que propõe, gerando assim uma crise que, em outras circunstâncias, poderia ser uma ameaça à democracia.

No mesmo discurso, Lula havia dito que sempre achou que não temos o direito de acabar com as coisas sem colocar algo melhor no lugar. E passar por cima do Congresso e do Judiciário, sobrepondo-lhes o Executivo que ele comanda, seria acabar com a democracia sem nenhuma possibilidade de colocar em seu lugar algo melhor. Passaram-se séculos e nunca se inventou melhor sistema de governo que este, do povo, para o povo e pelo povo, escorado em um tripé de Poderes, embora em tantos países e por tantas vezes tenha apresentado falhas e fragilidades.

Como não poderia deixar de acontecer, os dois outros Poderes reagiram. O presidente do Supremo, ministro Maurício Corrêa, ironizou Lula e disse que cada Poder “tem limites demarcados clara e expressamente”. Um grupo de quatro senadores (Efraim Morais, Jefferson Peres, Arthur Virgílio e José Agripino Maia) recusou-se a participar da divulgação da pauta da votação extraordinária do Congresso, convocado por Lula para trabalhar em julho. Deixaram claro que sua ausência foi motivada pelas declarações do presidente e pelo fato de a pauta ter sido fechada entre José Sarney e Paulo Cunha, presidentes, respectivamente, do Senado e da Câmara, sem a participação dos demais congressistas. E prometeram dizer, da tribuna, que o Congresso existe e que o presidente não vai passar por cima do Legislativo. Arthur Virgílio, do PSDB, foi mais agressivo ainda, lembrando que “o último presidente que achou que não tinha Congresso Nacional sofreu impeachment”, referindo-se a Fernando Collor de Mello, acrescentando: “Nos sentiríamos mal em ir a um ato depois de o presidente esbofetear o Congresso. Ele deve desculpas. Se continuar desse jeito, vamos recrudescer”.

A condução do governo e do PT nas reformas, em especial a da Previdência, não admitindo discutir nenhum de seus pontos polêmicos e perseguindo e até iniciando procedimentos que podem chegar à expulsão dos petistas que dela discordam, dão um tom de autoritarismo ao Executivo que autoriza concluir que as palavras de Lula eram uma ameaça aos demais Poderes.

O presidente não demorou a vir a público para dizer que foi mal interpretado em seu discurso. Que em nenhum momento quis passar por sobre os poderes Legislativo e Judiciário. Ele teria falado sob emoção, dirigindo-se particularmente a uma freira que era uma das formandas do Senai, numa ocasião que muito lhe tocava, pois ele próprio formou-se naquela instituição.

E queria expressar fé no Brasil e otimismo, mesmo diante de múltiplos e gigantescos empecilhos. O Brasil será grande e vencerá suas dificuldades. Já venceu esta, que poderia ser o início de uma perigosa crise entre os três Poderes e abalar a indispensável harmonia entre eles.

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