O presente texto se destina a analisar, mesmo que de forma bastante breve, as hipóteses que autorizam o juiz pode decretar a falência do devedor que se encontra sob recuperação judicial [Lei 11.101/05]. À primeira vista o exegeta, ao ler o texto do artigo 73 da referida lei, verificará que o juiz está autorizado a convolar a recuperação em falência nas hipóteses ali elencadas, quais sejam: quando houver deliberação da assembléia geral de credores, na forma do artigo 42 da mesma lei; quando não for apresentado o plano de reorganização, pelo devedor, dentro do prazo estabelecido pelo art. 53 (prazo de 60 [sessenta] dias); quando o plano for rejeitado pela assembléia de credores, consoante art. 56, parágrafo quarto, e quando, finalmente, houver descumprimento de qualquer obrigação assumida no plano de reorganização, na forma do art. 61, § 1.º, da lei de regência. Ainda, o parágrafo único do art. 73 contém mais uma hipótese: há possibilidade de convolação quando ocorrer inadimplência de obrigação não sujeita aos termos da recuperação judicial, nos termos dos incisos I ou II do caput do art. 94, ou quando for praticado ato previsto no art. 94, caput, inc. III, todos da mesma lei falencial. Trocando em miúdos, aquelas hipóteses se referem às obrigações assumidas após o processamento do favor legal, e impagas; quando, devidamente executado por dívida posterior líquida, deixa o devedor de nomear bens à penhora, não efetiva o pagamento, ou, ainda, não deposita o bem. Esta, quando o devedor, no curso de tal processo, praticar atos, exceto se fizerem parte de seu plano de tentativa de soerguimento, e que estão elencados no inc. III do art. 94, dentre eles, e para só ser exemplificativo: liquidar precipitadamente seus ativos ou lançar mão de meio ruinoso ou fraudulento, para evitar a satisfação dos credores, ou buscar retardar o pagamento das dívidas assumidas para com estes.
Mas, analisada a Lei 11.101/05 de forma sistemática e teleológica, e jamais olvidando dos princípios constitucionais aplicáveis, especialmente o da razoabilidade [ou da proporcionalidade]; o da bilateralidade de audiência bem como o do devido processo legal substantivo, sem descuidar do verdadeiro propósito da lei que é, de fato, estabelecer mecanismos jurídico-econômicos para a tentativa de soerguimento da empresa, ficando a falência para uma segunda hipótese, de fato quando é permitido ao juiz condutor do processo a convolar a recuperação em falência? A resposta implica em analisar o procedimento reorganizacional desde o momento em que a petição inicial é encaminhada ao juiz para despacho. Ao receber a petição inicial de recuperação, cabe ao juiz: determinar o imediato processamento do favor legal, nos termos do art. 52 da lei de regência, sendo que de tal decisão espraiam efeitos jurídicos em relação ao devedor, ao credor e ao terceiro juridicamente interessado; ou observar o art. 284 do Código de Processo Civil, a fim de que seja a inicial emendada. Não cumprida a determinação, o juiz indeferirá a inicial. Cumpria, e em estando de acordo a emenda, aí sim o juiz poderá observar o art. 52 da Lei 11.101/05, determinando o processamento da recuperação. Também pode o juiz indeferir a inicial prontamente [art. 295 do Código de Processo Civil]. Mas, cabe o juiz, em vez de observar uma das situações supra, decretar a falência do devedor? Não, não pode decretar a falência do devedor simplesmente porque as hipóteses que autorizam tal proceder estão devidamente elencadas no art. 73 da lei falimentar, o qual não contempla a possibilidade de decretação da falência quando da análise da petição inicial. O máximo que poderá ocorrer, em tal fase preliminar, é o indeferimento da inicial, sem, contudo, falar em decretação da falência do devedor em crise. Lembre-se, ainda, que o Ministério Público não é intimado a aduzir em tal fase processual.
Ora, em deliberação de assembléia de credores para fins de requerer a falência não se pode falar, justamente porque em tal fase processual ,[quando se ingressa com o pleito] inexiste nem sequer relação processual instaurada, e muito menos há a constituição de tal órgão deliberador, de modo que o inc. I do art. 73 não tem aplicação. Por outro lado, caso o juiz observe o art. 52, determinando o processamento do favor legal, até que seja escoado o prazo de 60 [sessenta] dias para a apresentação do plano de reorganização, não se pode falar em convolação. A hipótese do art. 73, inc. II estabelece que somente no caso de não se apresentado o plano dentro do prazo que estará o juiz autorizado a convolar, e lembre-se ainda que o prazo do art. 53 não pode ser considerado como preclusivo e apto a autorizar a convolação da recuperação em falência. Isso porque pode o devedor ter motivos para a não apresentação do plano, competindo ao juiz apreciar a fundamentação para eventual dilação do prazo. Fosse seguir a letra fria da lei, e observando que o devedor não apresentou o plano, o juiz convolaria imediatamente a recuperação judicial em falência. Mas é de todo evidente que cabe interpretação sistemática e teleológica da lei de regência, de modo que a prudência aconselha que o devedor, verificando [eventualmente] que não poderá cumprir o prazo para a juntada do plano, ingresse imediatamente em juízo pedindo dilação. O que não pode [e não deve] é ficar inerte, posto que, daí sim, poderá sofrer ainda maiores prejuízos, inclusive com a possibilidade, agora real, de ser decretada a falência.
A outra hipótese do art. 73 está escrita no inc. III e diz que poderá ocorrer a convolação em falência quando o plano houver sido rejeitado pela assembléia de credores. Com efeito, apresentado o plano [dentro ou fora do prazo] poderá sofrer “objeção” tal como diz a lei [art. 55], sendo que esta “objeção” necessariamente deverá ser fundamentada e devidamente instrumentalizada, podendo ser argüida por qualquer credor, de qualquer natureza. Um primeiro parêntesis: cabe pensar se somente ao credor é dado o direito de objetar. Poderia o terceiro juridicamente interessado assim agir? Crê-se que sim. Convocada a assembléia geral de credores para deliberar, e em ocorrendo a rejeição, sendo consta do art. 56, § 4.º o juiz deveria decretar a falência. Mas não é bem assim. Muito se tem escrito em manuais e tratados de direito falimentar que os poderes do juiz, especialmente em sede de recuperação judicial, seriam menores que em relação à concordata preventiva prevista no Dec.-Lei 7.661/45. Mas assim não é a particular forma de pensar. Primeiro porque, muito embora a lei preveja certos órgãos, como o comitê e a assembléia de credores, a última palavra ainda é do juiz condutor do processo reorganizacional. Portanto, além de lhe ser possível acolher o plano de reorganização, tal como consta do art. 58, § 1.º da lei, também poderá, atendendo a particularidade do caso concreto, determinar outros caminhos para fins de acolhimento do plano. Além disso, lembre-se que, em havendo a tal “objeção” ao plano, necessariamente caberá a intimação do devedor para que aduza, mesmo antes da convocação da assembléia de credores, cabendo temperança de interpretação do art. 56 da lei. Portanto, não é porque a assembléia delibera pela convolação do favor legal em falência que assim deverá, necessariamente, agir o juiz, cabendo razoabilidade de interpretação do art. 73, inc. III, da Lei 11.101/05.
A hipótese do inc. IV estabelece mais uma possibilidade de falência: quando o devedor descumprir obrigação assumida no plano de reorganização. Em primeiro lugar, a concessão da recuperação judicial pressupõe, inequivocamente, a aceitação do plano [mesmo com eventual alteração etc.], pois a tal concessão está expressa no art. 58. Esta é, aliás, a segunda importante decisão proferida no âmbito reorganizacional, tendente ao soerguimento da empresa ou empresário em crise. Pois bem. A contar de tal decisão o devedor ficará em estado de recuperação pelo perío,do de 2 [dois] anos [art. 61], e aqui cabe desde logo um novo pequeno parêntesis: o prazo somente é contado após a concessão, o que significa dizer que, a bem da verdade, a recuperação pode ter um período muito maior, se se considerar o procedimento desde a inicial, o prazo de 60 dias para apresentação do plano etc., sendo que tais aspectos devem ser considerados para contagem do tempo total do processo, que pode correr durante anos e anos, como visto. A convolação em falência, consoante hipótese do art. 73, inc. IV, implica dizer que já há precedentemente duas decisões: a que manda processar o favor legal e a que o concede, estando o devedor ciente das obrigações previstas no plano. Observado o devido processo legal substantivo, e desde que precedentemente seja o devedor ouvido a respeito, aí sim poder-se-á falar em convolação da recuperação em falência. A propósito, o princípio do devido processo legal não pode, jamais, ser olvidado, sob pena de serem criados ainda maiores prejuízos ao devedor em crise.
No que diz com a hipótese do art. 73, parágrafo único, entende-se que as hipóteses do art. 94, incisos I e II implicam em dívidas posteriores à recuperação e a ela não sujeitas, o que significa dizer que o legitimado está apto a requerer a falência do devedor, mas em outro processo, autuado de forma própria e não em apenso à recuperação. Muito embora o art. 154 do Dec.-Lei 7.661/45 não tenha sido observado quando da redação da Lei 11.101/05, tal procedimento é de todo possível, ou seja, o credor posterior à recuperação, enquanto esta não for julgada cumprida, têm o direito de requerer a falência, em apartado. Então, o que se quer dizer é que todo esse procedimento pós-recuperação que dá enseja ao pedido de falência do devedor não se trata de “convolação” e sim de pedido regular de falência, que não se imiscui com o rito próprio da recuperação, correndo em apartado, e jamais em apenso, tecnicamente falando.
Entrementes, a prática de ato previsto no art. 94, inc. III, da lei de regência pode e deve ser denunciada no âmbito próprio reorganizacional, aí sim cabe falar em convolação da recuperação em falência. A liquidação precipitada de bens, e não prevista no plano de reorganização; a transferência de estabelecimento a terceiro, credor ou não, sem o consentimento dos interessados, a simulação de transferência de patrimônio etc., devem ser objeto de manifestação, fundamentada, no âmbito do processo, em não em apartado.
Portanto, não é em todo e qualquer momento processual que a falência é autorizada, caso interpretado o art. 73 da Lei 11.101/05 sob os métodos hermenêuticos de interpretação sistemático e teleológico; o art. 73, por outro lado, jamais poderá ser interpretado sob o enfoque literal, gramatical, sob pena de desvirtuamento do instituto da recuperação; a análise da petição inicial permite, no máximo, que ocorra o indeferimento por parte do juiz, sem qualquer possibilidade de decretação imediata da falência, até porque tal hipótese não vem elencada no aludido art. 73 da lei; as situações que autorização a convolação, por assim dizer, em falência só ocorrem quando após o juiz determinar o processamento do favor legal, nos termos do art. 52. A decretação [ou convolação] da falência fora de tais hipóteses se constitui em erro gravíssimo, com prejuízos ainda maiores ao devedor, e, em conseqüência, aos credores, ao fisco e à própria coletividade na qual se insere a empresa ou empresário, mergulhados em crise.
Nota:
(1) Axioma de Tíbulo, transcrita por Michel de Montaigne. In – Páginas Escogidas. Seleção e Comentário de Pierre Villey. España: Ediciones Júcar, 1990, p. 112. Traducción de Enrique Díez-Canedo. Edición de Manuel Neila.
Carlos Roberto Claro é advogado, professor [assistente] de Direito Comercial, do Centro Universitário Curitiba [gr,aduação], especialista em Direito Empresarial, mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Unicuritiba, e membro do American Bankruptcy Institute [Virginia – USA]