A continuidade de negócio na falência e a lei 11.101/05

A Lei 11.101/05, que trata da reorganização e falência da empresa e do empresário, não obstante o pouco tempo de vigência, já vem sendo questionada por significativa parcela da hodierna doutrina nacional, quer pela existência de dispositivos utópicos, que dificilmente serão adotados em casos práticos e que, por outro lado, criam dificuldades para a efetiva recuperação do ente em crise; quer pelo fato de que grandes empresas instaladas no país, que estão se sujeitando aos ditames legais, enfrentam sérias dificuldades para reerguimento. Caso não é, aqui, de citar nomes desta ou daquela empresa em crise (nas suas variadas formas), pois são desconhecidos os atos válidos praticados nos autos do processo, e mesmo que se tivesse ciência, haveria impedimentos (de ordem estritamente éticas) de se pronunciar a respeito. Aliás, o vocábulo ?ética? está sendo corriqueiramente utilizado pelo hermeneuta hodierno, mas nem sempre se conhece a fundo qual é a dimensão, qual é a amplitude de tal termo, e busca-se pseudo-direito (nas mais variadas esferas), sob a bandeira da ?ética?, o que é deveras lastimável. A respeito, a obra ?Ética? do prof. Fábio Konder Comparato é bastante elucidativa. Mas, caso é de se interpretar a lei em vigor mediante aplicação dos métodos disponíveis, sendo que, na linha de Heidegger e Gadamer, a hermenêutica é filosófica, cabendo ao exegeta dar real sentido ao texto analisado, e para se chegar a tal ponto máximo, antes precisa compreender que a filosofia da consciência encontra-se superada, na linha de pensamento do prof. Streck (não se concebe mais a dicotomia do sujeito-objeto). Destarte, não obstante o paradoxo entre o fato de que o projeto de lei originário permaneceu por muito tempo dormitando (mais de 10 anos) no Congresso Nacional (especialmente Câmara Federal) e, de repente, teve seu conteúdo praticamente reescrito pelo Senado da República, é de ser observada e devidamente interpretada a Lei 11.101/05. Como se diz, lei é para ser cumprida. Mas lei é também para ser devidamente interpretada. Diante disso, tem-se que, a torto e a direito, considerando esse ou aquele caso concreto, o tema ?continuação de negócio na falência? vem à baila. Correto, pois, afirmar-se que a lei em exame permite a elasticidade de se conceder à massa falida o direito de prosseguir com as atividades? Com efeito, fosse a resposta dada com base no Dec.-Lei 7.661/45, não obstante o verdadeiro desastre que eram as tais ?continuidades?, evidentemente que lícito era ao devedor, ao credor, ao Ministério Público, e mesmo o juiz de ofício, buscar o prosseguimento da atividade, com supedâneo no art. 74 de tal lei.

Mas, voltando os olhos para os termos da lei em comento, é um total equívoco pensar-se em continuação de negócio sob os auspícios do novo regramento jurídico, e as razões são bem simples. Primeiramente, porque o espírito da lei (e não o espírito do legislador) é de que, com base na principiologia de cunho constitucional, busque-se o soerguimento da entidade em crise; busque-se mantê-la no mercado competitivo, al fim de que haja produção e circulação de bens e serviços; busque-se evitar demissão em massa de colaboradores (demissões essas que têm ocorrido com freqüência no Brasil e no exterior, principalmente na América); busque-se preservar o ente a fim de que este ente, capitalista, cumpra sua função. Então, na linha de raciocínio até aqui desenvolvida, o propósito legal é que haja a tentativa de reorganização judicial (utilizando-se a nomenclatura norte-americana), observado o art. 47 da Lei 11.101/05. Caso o processo de recuperação judicial não corresponda ao esperado diga-se, soerguimento e retorno ao mercado -, a falência será necessária, afastando-se o ente desse mercado, até mesmo para que seja observado o princípio do crédito público, dentre outros. Por outro lado, caso a entidade não esteja em recuperação (numa de suas hipóteses legais), deverá requerer a ?autofalência? (e, ao contrário do texto anterior, o novo não estabelece prazo para tal pleito). Então, pode-se chegar a uma primeira conclusão: a entidade estará em recuperação, e caso não obtenha a solução almejada, a falência será de rigor, e por outro vértice, em estando no mercado, e nele não possa continuar, considerando a crise atravessada, o pedido de autofalência será de rigor. Em assim não agindo, poderá sofrer o correspondente processo judicial, a ser instaurado pelos legitimados. Decretada a falência (em sede de autofalência, nos processos instaurados pelos legitimados, ou mesmo resultante de convolação art. 73), caberá ao administrador judicial imediatamente arrecadar os bens da entidade, pois isso é um ato imediato, contínuo, tal como diz o texto, não se podendo argumentar em torno da continuidade do negócio. Poder-se-ia defender a tese de que, quando do ato solene e formal da decretação da falência (art. 99), caberá ao magistrado condutor do processo pronunciar-se a respeito da continuação provisória, tendo à frente o administrador judicial, ou definir pela lacração do estabelecimento (arts. 99, XI e 109). Claro que está-se diante de um equívoco legal, pois, primeiramente a lei não estabelece qualquer procedimento acerca da tal continuidade (ao contrário do que constava de forma tímida no art. 74 da lei anterior; em segundo lugar, o administrador tem inequívoca ciência de que, fosse correta a assertiva de que há possibilidade de continuidade do negócio, seria ele responsabilizado no âmbito fiscal de forma solidária, e certamente não assumiria a função de auxiliar do juízo; não teria qualquer sentido prático a continuidade de negócio, pois a recuperação foi um equívoco (e não surtiu os efeitos almejados), e a retirada do mercado daquele ente que não reúne as mínimas condições deve ser imediata. Por outro lado, reforçando-se ainda mais a linha argumentativa, não lacrar o estabelecimento é aceitar a continuidade de negócio, cujo procedimento legal não é previsto; não se pode optar  ou pela continuidade do negócio ou a lacração do estabelecimento, pois o espírito da lei, no tocante ao processo falimentar, é completamente diverso, diametralmente oposto ao que consta de alguns manuais de Direito. Arrecadar bens sem a lacração é o mesmo que permitir a livre disponibilidade, por parte do devedor, desses mesmos bens, pois certamente inexistiria qualquer controle, por parte do administrador judicial. Por outro lado, apenas e tão-somente para argumentar, a eventual não lacração do bem não significa a continuidade de negócio, que, até aqui, restou um verdadeiro fracasso, pois a lei de 1945 não contém mecanismos jurídicos corretos a possibilitar o soerguimento, e por outro lado, os construtores do direito não souberam interpretar o Decreto-Lei 7.661/45 de acordo com o mundo concreto.

Carlos Roberto Claro é professor assistente de Direito Societário e Falimentar das Faculdades Integradas Curitiba; membro do ?American Bankruptcy Institute?.

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