A Constituição Européia – II – Habermas e a identidade européia: unidade na pluralidade

A elaboração de um texto constitucional no âmbito da União Européia (UE) gerou questionamentos sobre as perspectivas da região se tornar um Estado federal, de configuração democrática continental.

A UE encontra-se atualmente num estágio muito avançado de integração, superando a noção de mercado comum – em que há livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas – e atingindo o patamar da união monetária. Sua complexa estrutura funcional é responsável pela elaboração do direito comunitário, composto por um conjunto de regras que vinculam todos os seus quinze países membros.

Em que pese tal evolução, a UE continua construída com base no Direito Internacional Público, a partir de tratados internacionais celebrados entre os países. Não existe a noção de Estado único disciplinado e legitimado por uma Constituição que expresse a (e decorra da) vontade dos cidadãos europeus.

Os pessimistas quanto ao aprofundamento da integração européia entendem que esse déficit democrático é inevitável e, portanto, não há que se falar em novos avanços. O balanço entre poderes nacionais e supranacionais estaria equilibrado, sem necessidade e reformulação das instituições européias com vistas ao “superpaís europeu sediado em Bruxelas”, para usar o termo comum aos europeus céticos.

Por outro lado, os entusiastas do fortalecimento do bloco – chamados por Thomas Ferenczi de otimistas-idealistas (Le Monde, 20/05/2003), têm uma visão diferente sobre a identidade e cidadania do povo europeu e alegam a importância de uma união regional para se contrapor a um mundo globalizado em que há erosão daqueles poderes nacionais.

Jürgen Habermas parte do pressuposto de que a noção de povo não está restrita à abrangência estatal mas se estende à “autocompreensão multicultural” dos cidadãos e se caracteriza pela coesão política entre os indivíduos, constituindo uma opinião pública integrada além dos limites do Estado. O reconhecimento ético-político da idéia de coletividade esteve pautado na “institucionalização jurídica de uma comunicação entre cidadãos” de um mesmo país mas nada impede que isso avance para um contexto regional. A Europa se apresenta como um ambiente fértil para isso: estrutura burocrática única, crescimento unificado nas áreas econômica e social, formação cultural comum e história compartilhada. A conjuntura comunicacional pode se dar para fora da demarcação das fronteiras nacionais, conforme o mestre de Düsseldorf ensina:

“Na verdade, para que esse contexto de comunicação se estabeleça parece faltar apenas um desencadeamento por via jurídica constitucional. Também a exigência de uma língua comum – inglês como second first language – poderia deixar de representar um empecilho intransponível, haja vista a situação atual da educação escolar formal nos países europeus. Identidade européia não pode significar nada senão unidade na pluralidade nacional: para isso, a propósito, após o aniquilamento da Prússia e o equilíbrio entre as diversas confissões religiosas,o federalismo alemão não oferece um mau modelo.” (HABERMAS, J. A Europa necessita de uma Constituição?. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. Tradução George Sperber e Paulo Astor Soethe [UFPR]. São Paulo: Edições Loyola, 2002.) p. 184.

Resta saber se tais argumentos convencerão os governantes dos Estados da Europa e os dirigentes dos diversos órgãos da UE, que relutam em aceitar novos avanços e transformar em realidade as palavras do preâmbulo do projeto de Constituição, quando estabelece que os europeus “estão decididos a superar as suas antigas divisões e, unidos de forma mais estreita, a forjar os seus destinos comuns.”

Tatyana Scheila Friedrich

é mestre/UFPR, professora de Direito Internacional Público e Privado e Direito da Integração Regional.

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