“Somos obrigados a aceitar a filosofia dos mercados financeiros, tal como ela se apresenta, detestá-la, no segredo da nossa alma, mas tratá-la como uma realidade, sob pena de receber violentos choques em resposta”
(Alain Minc, O Triunfo da Mundialização, p. 15).Este artigo tem a finalidade de mostrar a simplicidade com a qual os sucessivos governos brasileiros têm tratado de questões extremamente importantes para todos nós. Permite, também, refletir sobre o grau de comprometimento a que estamos submetidos perante as autoridades econômicas internacionais, conforme expressa, com clareza singular, a última carta enviada ao Fundo Monetário Internacional.
Carta é um vocábulo de grande riqueza semântica. Em sentido tradicional, bastante utilizado por poetas e romancistas, o termo expressa a idéia de mensagem que transporta, em caráter confidencial, os sentimentos da alma e do coração. Tantas vezes, no decurso inexorável do tempo, uma simples carta traçou destinos (unindo ou desunindo pessoas)! Ela comporta, geralmente, mensagens profundas, embora ingênuas.
Mas carta pode ter outros sentidos. Há a carta testamentária (em sentido político), a carta do abc (a velha cartilha, que ensejava os primeiros contatos com a leitura), a carta régia, a carta de alforria etc. A mais famosa para os brasileiros, certamente, é a carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao rei de Portugal noticiando as maravilhas que por aqui encontrara.
No Direito, fala-se em carta precatória, carta rogatória, carta patente, carta de fiança, carta de remessa, carta testemunhável, carta testamentária, carta de ordem, Carta Magna etc.
Há, no entanto, outra espécie de carta que tem sido muito difundida. Refiro-me às cartas de intenções que países de economias periféricas, como o Brasil, enviam ao Fundo Monetário Internacional, sediado em Washington. Essas cartas, nada ingênuas, também têm selado destinos.
No mês passado, o Brasil enviou nova carta de intenções ao FMI com a assinatura de Antônio Palocci, Ministro da Fazenda, e Henrique de Campos Meirelles, Presidente do Banco Central. Trata-se de uma carta franca e sincera, como aquelas trocadas entre namorados de antigamente, porém nada ingênua. Ela relata o que já foi feito e manifesta intenções para o futuro
O que segue está na carta, apenas suprimindo-se as aspas: a) a economia claramente superou as dificuldades iniciais; b) a política fiscal está de acordo com o estabelecido; c) o setor externo continua a ter bom desempenho; d) a agenda das reformas estruturais do governo ? a reforma da previdência e a reforma tributária ? avança com vigor no Congresso; e) o projeto que altera a Lei de Falências deverá ser votado em breve; e f) a venda dos bancos federalizados (Ceará, Maranhão, Piauí e Santa Catarina), embora com alguns obstáculos legais, avançará significativamente até ao final do ano, com a conclusão de nova rodada de avaliações para a determinação do preço mínimo de venda.
Na despedida, a carta reitera os compromissos de manter o diálogo e de tomar as medidas adicionais necessárias: “Como de hábito, continuaremos a manter uma relação próxima de diálogo com o Fundo e, se necessário, estaremos prontos a tomar eventuais medidas adicionais para alcançar os objetivos do programa”(?!).
Enfim, após todas essas confidências ? que, em verdade, já são antigas ?, pode-se dizer que a esta cumplicidade faltam apenas os beijos na boca. Com a carta, embora ainda não se tenham notícias de namoro, noivado ou casamento, o governo brasileiro obteve empréstimo de mais US$ 4,2 bilhões, liberados pela turma de Bretton Woods.
A carta é simples. Complexas são as conseqüências geradas por ela.
Zulmar Fachin
é professor de Direito Constitucional na graduação, pós-graduação e Escola do Ministério Público do Paraná (Londrina e Maringá), doutor (UFPR) e mestre em Direito (UEL), mestrando em Ciência Política (UEL) e aluno da pós-graduação (doutorado) em Ciência Política na Universidade de São Paulo..