? União Européia é como
uma bicicleta, se deixarmos de
pedalar ela pára.?
Jacques Delors
O novo Tratado que pretende reger a União Européia, chamado de Constituição Européia, foi firmado em Roma – berço da construção européia, já que o primeiro tratado foi assinado em Roma, aos 25 de março de 1957 -, em 29 de outubro de 2004, desencadeando a forçosa ratificação pelos 25 sócios para que possa entrar em vigor em novembro de 2006.
A Espanha foi o primeiro dos países da União Européia a aprovar, pela via referendária, a Constituição Européia, com 33,7% a favor e 17,3% contra, resultado que causou algum desconforto dentre os países que optaram por este sistema de ratificação, pela alta abstenção do povo espanhol, que, em princípio, deveria apoiar as causas européias, já que é um dos grandes beneficiários das vultosas ajudas a fundo perdido destinadas a este país, o que para já demonstra um descaso ou falta de interesse para com as questões comunitárias.
Para além da Espanha, estão com data marcada os referendos em França, em 29 de maio, na Polônia, em 25 de setembro, na Dinamarca, em 27 de setembro, em Portugal e na República Checa, ainda sem data definida. Optaram pelo sistema misto, através de consulta popular e parlamentar, a Holanda, em 1.º de junho, o Luxemburgo, a 10 de julho, Irlanda e Reino Unido, para o ano de 2006.
A ratificação da Constituição Européia pela via parlamentar já foi levada a efeito pela Lituânia (11.11.04) Hungria (20.12.04) e Eslovênia (1.º 02.05). A Áustria, a Eslováquia, a Bélgica, Itália e Chipre devem fazê-la em maio, Alemanha e Grécia, em junho, Malta, em julho, Suécia, em dezembro, Finlândia, em 2006, e Letônia e Estônia ainda não definiram a data.
O Parlamento Europeu, composto por 732 deputados, eleitos por sufrágio direto, que representam os vinte e cinco Estados da UE, aprovou a Constituição Européia em janeiro último, com 500 votos favoráveis contra 137 contrários.
Atualmente a ratificação da Constituição Européia, nomeadamente nos países que irão a referendo, tem sido a causa de acaloradas discussões e de alguma tensão, já que a desaprovação por um dos países sócios é o suficiente para o Tratado não entrar em vigor.
No epicentro da tensão encontra-se atualmente a França, um dos países fundadores da Europa comunitária, e que, ao lado da Alemanha, é considerado um dos mais vanguardistas nos ousados passos que vão sendo dados, nesta caminhada que começou com seis e hoje já conta com vinte e cinco países.
Com o referendo a se aproximar em França, o não à Constituição continua a crescer nas últimas sondagens, rondando a casa dos 55%. Quais seriam as causas da pretensa recusa francesa ao Tratado Constitucional?
A posição da entrada da Turquia na UE tem sido um dos motivos do grande debate, que se inicia com a simples questão de se saber se a Turquia está ou não no continente europeu, para além de se rechaçarem os costumes, a religião, o desrespeito aos direitos humanos, mas realmente o que tem preocupado os países grandes é o fato de a Turquia hoje ter a segunda maior população no quadro dos países da Europa Comunitária, e em 2012, quando está prevista a sua incorporação, já será o primeiro país em população. Isso significa que este país será o de maior peso e representatividade, a contar com o maior número de deputados no Parlamento Europeu.
A possível entrada em vigor de uma diretiva comunitária – uma das formas de legislação derivada no seio comunitário, e que obriga todos os países ao seu cumprimento – sobre a liberalização parcial dos serviços, conhecida por Diretiva Bolkestein (nome do ex-Comissário europeu para o mercado interno), traz uma ameaça aos franceses, posto que os países do Leste Europeu, por terem mão-de-obra barata e qualificada, apostam suas esperanças nos serviços, estimulados ainda mais pelo princípio do país de origem, que permite a qualquer Estado prestador de serviços exercer a sua profissão em toda a UE, estando submetido às normas sociais e fiscais do Estado em que está estabelecido.
O descontentamento com o atual governo, precipuamente repercutido no aumento do desemprego, também são causas da negativa ao Tratado Constitucional. E aqui, é bom que se diga, os Estados que vão a referendo sempre arriscam ver nas urnas uma manifestação de repúdio das políticas nacionais, refletidas em uma consulta de âmbito comunitário, onde os eleitores querem mostrar a insatisfação com o atual governo dos seus respectivos países.
Se em França, com toda a sua carga histórica na edificação da Europa comunitária o não realmente vier a vencer, o que se dizer de países declaradamente eurocéticos como a Grã-Bretanha Unido e a Dinamarca, sempre renitentes a uma maior integração comunitária – não se olvide que estes dois países, além da Suécia, não fazem parte da moeda única européia -, acrescido ainda de um novo sócio, a Polônia, que está hesitante diante do novo Tratado.
Assim que a rejeição da Constituição Européia pelos franceses representará um golpe fatal ao Tratado, e desencadeará uma crise política com conseqüências nefastas não só internamente, como também no cenário internacional. Sabe-se, pela experiência comunitária, que o voto negativo quando emitido por países pequenos não causa tanta preocupação. A Europa já assistiu a duas recusas de Tratados pela via referendaria: a Dinamarca e a Irlanda, aos Tratados de Maastricht e de Nice, respectivamente, mas que foram convidados a reconsiderar a sua posição. Porém não se sabe qual será a reação que poderá ter o voto negativo de um país com o peso da França.
Sem embargo, de se ressaltar que a rejeição ao novo Tratado Constitucional não significa o desmantelamento deste bloco econômico, que continuará a ser regido pelo Tratado de Nice, assinado em 25 de fevereiro de 2001, em vigor desde 2003.
A comparação da Europa comunitária com uma bicicleta é sempre recorrente na dinâmica do processo comunitário, que está sempre a andar para frente, sem nunca parar, para não haver o risco de desequilibrar-se. Ao rondar os seus quase cinqüenta anos de quilometragem, quem sabe ela realmente pudesse parar para uma revisão, pois, como sabem os ciclistas, basta uma limpeza, uma manutenção nos freios e um óleo na correia para ela voltar a ser a velha e boa bicicleta de sempre.
Elizabeth Accioly é doutora em Direito Internacional USP. Professora das Faculdades Curitiba. Professora visitante do Curso de Pós-Graduação do Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e do Collège des Hautes Études Européennes da Universidade de Paris I.