Esclareço desde logo que as impressões que vou relatar neste ensaio, não passam de uma visão pessoal, particular, de uma pessoa que viveu as duas últimas décadas acompanhando atentamente os fatos políticos e sociais, e sob a influência de um discurso que motivou toda uma geração a acreditar que a esquerda ascendendo ao poder, assumiria práticas políticas diferentes das utilizadas pelos políticos de direita (militares ou não) que até então dominavam a cena política.

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Neste ensaio não manifesto qualquer preocupação formal atinentes às métricas indispensáveis aos textos acadêmicos, como a citação das fontes ou a indicação histórica dos fatos. Também acabo sendo reducionista e simplificando fatos complexos. Mas não tem outro jeito de escrever uma opinião política que seja fruto de uma visão particular, que não pretende ser científica ou universalizante, e totalmente desengajada, desvinculada, portanto, de qualquer partido político, e que deseja ser apenas o que é: uma mera opinião política. Este é um texto despretensioso e despreocupado. Talvez um desabafo. Trata-se, portanto, de uma impressão pessoal sobre a política e os fatos históricos que vivenciei em período recente, externada neste momento para que, se for o caso, suscite discussões pertinentes. Ou não. Servindo, nessa hipótese, apenas como uma espécie de epitáfio de uma adesão que confesso a um discurso belo e sedicioso, que pautou minhas opiniões políticas durante duas longas décadas.

Me refiro ao discurso de esquerda, que é pensamento corrente nos púlpitos universitários ainda hoje, originário, sobretudo, do encastelamento da esquerda em parte das cátedras das Universidades (mormente nas públicas), e que seduziu a mim e a grande parte de toda uma geração com promessas de uma ética de eficiência social, de implementação de igualdade (sem perder a liberdade) e, sobretudo, por um agir moralizante.

Esse contato de boa parte da minha geração com tais discursos foi propiciado pelo refúgio da esquerda nas Universidades, especialmente nas faculdades humanas e sociais (nos cursos de ciências sociais, história, geografia, direito e afins), acuadas pela perseguição dos militares, até então vencedores de uma guerra não declarada, o que permitiu que uma situação provavelmente sem precedentes ocorresse: a história passou ser contada pelos vencidos.

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A beleza do discurso de esquerda, com sua pauta social, igualitária e moralizante, encontrou aceitação quase automática (e quase obrigatória, por vezes) de grande parte de uma geração de jovens idealistas, impulsionados por uma abertura política recente e ainda incompleta (vide movimento em marcha de intimidação e amordaçamento da opinião pública, com decisões até de Tribunais aquiescendo com censuras prévias a jornais), pela sede libertária pós 21 anos de regime de exceção, e por ser fácil, naquele momento, distinguir o lado dos bons (a esquerda), e se solidarizar com o seu sofrimento, bem como repudiar as atrocidades cometidas e também, por consequência, seus autores (a direita).

A ascensão da esquerda ao poder, como também já havia ocorrido com a burguesia em 1789 (combatida pela esquerda e culpada sempre e às vezes injustamente pelas mazelas sociais), teve o duro destino de contrastar discurso e realidade. Práticas políticas incompatíveis e discursos que agora não precisavam mais ser sediciosos (a exemplo do que também fez a burguesia, adepta do direito natural, que após a sua ascensão, abandonou o discurso naturalista, pois já havia conquistado a máquina positivista de fazer leis) passaram a permear a atuação da esquerda no país.

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O impacto da realidade e a responsabilidade sobre suas ações parece não ter feito bem à esquerda, que abandonou, pela prática, seus discursos, sobretudo onde ele era mais importante: na ética moralizante. Passou a revelar então a agudeza dessa discrepância, o seu lado humano (demasiadamente humano), locupletando-se de dinheiro público e se utilizando de práticas políticas inconfessáveis, a ponto de ser considerado por muitos como o governo mais corrupto de todos os tempos, superando até mesmo o daquelle que era o paradigma de uma administração nefasta. É claro que a realidade pode ser maquiada com políticas sociais paternalistas, turvando a visão de muitos e cooptando os interessados. Outra vez o impacto da realidade (agora a favor da esquerda): o “vale geladeira” e congêneres são mais visíveis, compreensíveis e importantes, do que palavras abstratas como “mensalão”, “clientelismo” e “tráfico de influência”, idéias invisíveis demais, e inacessíveis demais para boa parte dos seus destinatários.

Sintomático dessa discrepância entre discurso e prática, foi notícia nesta semana, e causa repugnância às pessoas de bem: a articulação dos parlamentares, sobretudo da base do Governo na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, para implementar uma anistia aos integrantes do mensalão (aquele grupo de políticos que durante o governo passado, a partir da Casa Civil, teriam feito pagamento mediante dinheiro desviado dos cofres públicos, aos parlamentares para que votassem a favor de projetos do Governo). Ora, se como alegam nas suas defesas os acusados em denúncia aceita pelo STF, o mensalão não teria existido e teria sido fruto de acusação infundada da oposição (embora o procurador-geral da República tenha escrito na denúncia que é a “mais grave agressão aos valores democráticos que se possa conceber”), porque será que se esforçam no sentido de anistiar os acusados?

Por situações semelhantes a esta, que aconteceram ao longo do Governo anterior e continuam a ser objeto de denúncias no Governo atual (cinco ministros de Estado já deixaram o Governo e outros são alvos de denúncia), sublinham a discrepância inconciliável entre o discurso, sobretudo ético, e a prática política da esquerda ao assumir o poder, e atordoou a toda uma geração, mas certamente não sepultou seus ideais e muito menos sua capacidade de se indignar e ainda de perceber que o maniqueísmo em qualquer espaço da vida é ruim e invariavelmente desmentido pela realidade.

É bom ressaltar que malfeito com o dinheiro público não é de exclusividade da esquerda, mas a frustração é francamente maior, em razão do seu sedutor discurso ético, hoje integralmente desfeito pela práxis política.

Frustrado estou, mas mantenho a capacidade de discernir sobre o que seja essencialmente bom ou mal, independentemente do matiz ideológico em que se revela e do discurso em que venha embalado, talvez esta sim seja uma prática política mais realista para, como a história, não me repetir como farsa.

  

Alexsander Roberto Alves Valadão é professor de Direito Constitucional e Tributário da PUC/PR e mestre e doutor em Direito pela UFPR, e-mail advaladao@terra.com.br.