A alegria de reviver leituras

Entre as comemorações do cinqüentenário de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, saiu a edição especial do romance. Um volume avantajado, capa em tecido branco, com letras vermelhas bordadas de onde pendem fios análogos a sangue derramado (aliás, motivo reproduzido da trilha ?Batalha? da instalação no museu) e edição primorosa para render agradecimento ao mestre da narrativa e da linguagem. Acompanha as 553 páginas do texto um belíssimo complemento: textos e fotos da instalação Grande sertão: veredas, criada por Bia Lessa, diretora de teatro, para o Museu da Língua Portuguesa, em março de 2006. Acompanha, ainda, um DVD com leitura de Maria Bethânia, depoimentos de escritores e críticos literários, numa valiosa documentação sobre a recepção dos leitores de Guimarães Rosa, com relatos de entrevistas e vivências pessoais. A lamentar, no entanto, que, da magnífica participação de Poty Lazzarotto na primeira edição do livro, criando a capa, a folha de rosto e o mapa da região abrangida pela narrativa, apenas tenha sido reproduzido, parcialmente, o mapa. Essa primeira interpretação do romance, em forma de imagem, permanece apenas em edições esgotadas feitas pela editora José Olympio. História do livro, portanto.

Tenho pelo romance rosiano a maior admiração, nascida do tríplice desafio de ler as aventuras de um jagunço (não conheci nenhum em minha vida) no sertão mineiro (que desconheço totalmente) numa linguagem que não falo, nem escrevo. São tantos os motivos para justificar o meu afastamento desse texto, que até hoje não sei explicar por que tentei, tentei e consegui afinal ler todas as suas páginas. Hoje contabilizo quase uma dezena de vezes de leitura integral e algumas dezenas de leituras parciais daquela que considero, entre tantos e variados textos, a mais significativa e mais emocionante leitura de minha vida.

Sei que não estou escrevendo um texto original. Tão certo quanto a falta de originalidade desse fragmento de minha história de leituras é o fato de que muitos leitores ainda passarão pelas mesmas dificuldades e a mesma paixão.

De passagem, convém lembrar que paixão é vocábulo oriundo do verbo latino arcaico patere, sofrer. Olhares vazios ou intrigados de alunos sofrendo o impacto de uma narrativa esquiva e pedregosa (sem deixar de ser poesia em alto grau) como a de Grande sertão: veredas constituem uma imagem repetida e freqüente em minha trajetória docente. Também repetidas vezes, percebi como o entendimento e o encanto passavam a demolir a incompreensão para substituí-la pela face descontraída, e a ver como os lábios abriam-se em expressão de deleite, e o olhar confundido transformava-se em brilho e concordância.

Há uma inegável força expressiva nessa linguagem narrativa que, independente do conhecimento específico do significado de cada vocábulo, consegue traduzir um mundo de disputas, amores, traições, desejos e maldade sob a governança do humano. Riobaldo, o protagonista, tenta compreender quem na verdade manda nos homens, no destino e no mundo. A busca desse poder primordial, multiplicado e dividido, constitui a maior das aventuras desse andarilho do sertão. Quando Riobaldo guerreia, escreve, conta, medita e ama, o leitor, em intensa aderência, repete processo idêntico a seu lado. A linguagem que conduz a leitura é a mesma que seduz e ata para sempre leitor e narrador.

Diferentemente dos romances superficiais e levianos que intimam o leitor para a identificação exclusiva, neste romance, o leitor lê sua imagem em vários personagens, não se deixando absorver por um só personagem. Somos conduzidos pela linguagem narrativa a questionar os muitos eus que nos compõem. Vivemos um tanto na mente de homens e mulheres, indiferentemente. Participamos, concordando interiormente, com muitos personagens que representam o bem e o mal, a guerra e a paz, a dúvida e a certeza, a traição e a fidelidade. Essa multiplicidade de fios de aço, que prende o leitor pela força das palavras do autor, permite que estejamos, no processo da leitura, em atenção constante a revelações que o texto faz em linhas e entrelinhas.

O suplemento, que acompanha essa edição traz em muitas páginas um apanhado de frases imorredouras. Algumas já convertidas em citações obrigatórias. Outras aguardam que a vida e os fatos exijam explicação ou demonstrem contradições para que recorramos ao texto do Grande sertão, a fim de que ele nos diga como entender, como aceitar, como duvidar.

Guimarães Rosa, na documentação do falar e da tradição oral, aprendeu a fazer provérbios, senão, ?mire e veja? este exemplo: ?Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte…?. Mas o que melhor atinge nossa mais intensa apreensão de leitura são frases como: ?Somente com a alegria é que a gente realiza bem mesmo até as tristes ações? ou, em outro momento, ?Vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só fazer outras maiores perguntas?.

Para a vida, para a escrita, para dentro de cada um, como é possível não reconhecer o humano em: ?Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.??

Para que não se pense que devemos buscar na leitura apenas essas lições de vida, recomendo, para além do moralismo, que parece estar presente nas frases citadas, a aventura do narrar, a beleza e os efeitos estéticos de construção da própria história do jagunço Riobaldo, suas idas e vindas, suas perdas, seu relutar no reconhecimento da existência do Bem e do Mal na travessia humana.

É assunto para mais de muitas crônicas esse livro indispensável aos brasileiros leitores, livro em que, segundo Antônio Cândido, o autor consegue igualar-se aos melhores textos da literatura universal, porque constrói e exemplifica o paradoxo entre a extrema fidelidade e a extrema liberdade.

Com (muito) açúcar, com (pouco) afeto

Ricardo Pimentel

 
Foto: Aliocha Mauricio/O Estado
?A sociedade forjou a reificação
das relações humanas.?

O título deste artigo nasceu como idéia ao longo de uma conversa com uma profissional da educação durante visita a uma escola. Eu e minha mulher avaliávamos a escola para meu filho que completa quatro anos em fevereiro e o assunto girava em torno de quanto os pais se envolviam com a vida de seus filhos na escola. Desde então venho lutando com a dificuldade em transformar essa idéia em um artigo. Para entender minha dificuldade é importante entender o que há por trás dela.

Envolvido profissionalmente com a educação há quase 12 anos, seja como gestor de marketing ou professor, tenho uma preocupação muito grande com o papel que a escola exerce na sociedade atual, e como o trabalho de marketing pode, mais do que ?captar alunos?, captar as reais necessidades dessa sociedade de tal forma que a escola possa contribuir com sua melhoria, ao menos naquela parte que lhe cabe.

A sociedade capitalista forjou a reificação das relações humanas, entre tantas outras características. De modo simplificado isso significa dizer que sentimentos, conflitos e emoções passam a ser colocados em objetos. O dinheiro é a expressão maior dessa tendência, mas como fenômeno social espalhou-se por todos os níveis da sociedade.

Dessa forma não sou eu que não sei lidar com o tédio e a frustração de uma vida muitas vezes sem sentido, mas a programação de televisão é que está ruim, a conexão com a internet que está lenta, o brinquedo que não é bom porque rapidamente ?perdeu a graça?. É comum nos depararmos com crianças que diante de um quarto cheio de brinquedos, ou de um quintal com árvores e inúmeras possibilidades de brincadeiras, só sabem dizer: ?Ai! Não tem nada pra fazer!?. Daí a depressão infantil e adulta, a obesidade, o uso de drogas lícitas e ilícitas, o revólver na mão em uma simples discussão de trânsito, e tantas outras expressões da nossa incapacidade de lidar internamente com nossas limitações.

Várias são as causas desse fenômeno social e cultural, que de forma reduzida entendo que o título deste artigo possa expressar: estamos vivendo com ?muito açúcar? e pouco afeto. E infelizmente, no afeto não há necessidade de se colocar aspas!

A escola pode mudar essa situação? Não sei responder. Vem daí minha dificuldade em transformar minha idéia em um artigo que seja útil para quem o lê, o que confesso continuo sem conseguir.

Mas que seja pelo menos uma possibilidade de começo de uma reflexão, dessas que a gente faz na virada do ano.

A escola que eu quero para os meus filhos e para os filhos da sociedade onde eu vivo tem que ajudar a inverter o título deste artigo.

Eu quero uma escola e uma sociedade ?Com (pouco) açúcar, com (muito) afeto?.

O Natal pode ser um momento especial para se exercitar nessa forma de encarar a educação. Feliz Natal!

Ricardo Pimentel (pimentel.ric@uol.com.br) é consultor de marketing e professor da Unifae Centro Universitário e da Faculdade Opet.

O texto, o prazer e o consumo

Camilla Damian Mizerkowski (UFPR)

Não há como negar que todos apreciam ouvir uma história bem contada. Seja a anedota do avô no almoço de domingo, a notícia de jornal ou um grande clássico da literatura, contamos e ouvimos histórias pelo divertimento, entretenimento, curiosidade, fruição estética ou qualquer outro motivo que justifique o tempo dispensado. Quando falo em história escrita, refiro-me aos variados tipos de literatura: esotérica, revistas em quadrinhos, parábolas em livros de auto-ajuda, grandes clássicos, histórias infantis e quaisquer outras que se possa lembrar.

O fato é que o desejo, e talvez até a necessidade da leitura, existe. O escritor, por sua vez, deseja que seus livros sejam lidos. Ninguém escreve algo para publicar e se alegra ao saber que serve tão-somente para alimentar traças ou acomodar o pó. Se por um lado o leitor quer encontrar prazer na leitura seja ele estético ou gastronômico, como define Umberto Eco em ?O texto, o prazer e o consumo? no livro Sobre os espelhos e outros ensaios por outro, os escritores desejam suscitar esse prazer em seus leitores. É uma via de mão dupla, para utilizar o chavão. Como podemos, então, definir a boa literatura se considerarmos o gosto do público? Por que nossos alunos e filhos sofrem tanto ao ler Machado de Assis, se ele, apesar de ser considerado um grande escritor pela crítica, ansiava também agradar seu público? E Dan Brown, com o Código Da Vinci, rechaçado pela crítica, mas ovacionado não somente pelos leitores, mas inclusive por Hollywood? Como encontrar uma resposta para essa disparidade? Será que satisfazer o leitor significa escrever uma obra menor? Por que obras de grande valor estético devem ser a causa de tantas torções de nariz e sonolência abrupta? Como definem os americanos, será que a alta literatura sempre engrossará a lista dos GUB (Great Unread Books), sigla traduzida por mim como GLNL, ou Grandes-Livros-Que-Ninguém-Lê? A verdade é que algumas obras capricham na trama, mas se revelam menores em sua releitura. O grande prazer está em ler uma vez, surpreender-se, assustar-se, e então fechar o livro e passar para outro, ou assistir à televisão. É como o Sexto Sentido (lembram daquele filme com o Bruce Willis?); assisti-lo pela segunda vez não tem graça nenhuma, pois ele se esgota em sua primeira leitura. Talvez a segunda seja só para perceber os truques do cineasta para surpreender seu espectador no final. E só.

Outras obras, para voltar a falar de livros, já são mais desafiadoras. Elas trazem muitas vezes um grande enredo, outras tantas grandes personagens como a Capitu, do meu injustiçado Machado de Assis, ou uma combinação dos dois fatores, que uma leitura somente não dá conta de esgotar. Voltamos ao livro, e descobrimos a sua esfera simbólica, sua esfera social, sua esfera psicológica. São tantos cosmos para desvendar que, dependendo da idade do leitor, da sua educação, até de como foi seu dia, o livro parece novo a cada releitura. Porém essas diversas leituras dificilmente são todas previstas pelo autor: um grande livro pode ser descuidada e ingenuamente lido, e um texto considerado menor pode suscitar interesses novos, dependendo da época e do olhar do leitor.

Portanto, a qualidade estética da obra não é o fator determinante para sua recepção pelos leitores (esqueçamos aqui da crítica literária especializada). Grandes clássicos podem tornar-se best-sellers se vistos à luz de uma leitura puramente gastronômica, e textos menores podem suscitar uma leitura aprofundada. Mais do que uma pesquisa mercadológica ou a proposta de um autor, é o público e seu conhecimento, a época e o local de publicação que determinam qual história alcança o tão almejado sucesso.

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