A água é o matrimônio da humanidade

O título acima não é um erro gramatical ou de digitação. É o mote de meu livre pensar desta semana. Não a inventei, ganhei de presente de um colega, entre risos e pensamentos críticos até inconfessáveis. Um (ou uma?) jovem vestibulando (a) a usou para argumentar a respeito dos cuidados que devemos ter com a água, que esbanjamos como se fosse eterna.

O que passou pela mente jovem e entusiasta ao associar o termo usual (patrimônio) e a descoberta da concordância, segundo seu entender, indispensável entre o sujeito da frase e seu predicativo? A água é patrimônio soa desconforme. Patri – vem de pater, pai, masculino, impeditivo, normativo, obstaculoso e obstaculador. A água fluida é mais o sentimento feminino, a adaptabilidade, a fonte e a origem. Ao mesmo tempo, é conjugação de componentes e resultado de uniões. H2O é fórmula geminada, dupla, conjugada. Combina melhor com matrimônio.

Lembro de versos de Drummond em Menino antigo:

?O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.

Com ela, sim, me entendo bem melhor:

Mãe é muito mais fácil de enganar.

(Razão, eu si, de mais aberto amor.)?

Lembro também de Adélia e a conclusão imperiosa de ?Mulher é desdobrável?. Revejo na memória de leitura todos os poetas da água, desde o Amazonas caudal e misterioso de Cobra Norato, de Raul Bopp, à água que banha Manaus dos romances de Hatoum, as águas profundas e simbólicas de Grande sertão: veredas e a viagem pantaneira de Manoel de Barros, assim as águas sulinas de Breviário das terras do Brasil, de Luiz Antônio de Assis Brasil e Os rios inumeráveis, de Álvaro Cardoso Gomes. Todos esses (e muitos mais) caminhos de água doce por onde viajam e cruzam as embarcações que carregam origens e brasileiros de todos os tempos.

A mãe e as águas. A mãe das águas: Iara, a que deseja, atrai e mata. A mulher matrimônio.

Pode ser que a receosa e tensa candidata (imagine aqui, leitor, também as formas masculinas) a uma vaga na universidade não tenha feito nenhuma dessas associações. Mas esta leitora que aqui escreve, sim. A analogia tomada por outros colegas leitores enquanto erro ou manifestação de incapacidade lingüística, pôde provocar em mim outra interpretação. E indagação. Que mistérios e belezas esconde a língua nesses encontros inesperados? O quanto pode criar o leitor a partir de textos sem intenção estética? Freud acena com os achados dos lapsos inconscientes e o leitor deleita-se com a busca dos processos analógicos e das razões (conscientes) que originaram as imagens reveladoras.

A mãe-matrimônio da humanidade, como assim também pode ser considerada a expressão verbal, oral ou escrita, permite ao leitor fecundado criar, por sua vez, e disseminar sentidos, valores, belezas, enganos, ilusões…

O livro-útero, cuja água placentária envolve o leitor e na qual ele experimenta e aprende a reconhecer a auto-imagem (borrada, deformada, cruel ou prazenteira) em vivência solitária num primeiro momento. O leitor, essa figura metamórfica e plural, arredia e desconfiada, ou apaixonada e entregue, sempre em busca de uma parcela de identidade em cada livro lido. Identidade que foge, como correm as águas do rio.

Estou imersa em mais uma leitura de revelações e prazeres, que me impele a anunciá-la a todos os ventos e a meus poucos leitores. O ficcionista e professor argentino Ricardo Piglia escreveu e a Companhia das Letras editou recentemente O último leitor. São seis estudos sobre autores como Borges, Kafka, Tolstoi e Joyce e as imagens de leitor e do ato de ler que seus textos constroem. E mais dois estudos com reflexões sobre os processos de leitura em hipotéticos leitores e em Che Guevara. O prólogo trata de um fotógrafo, que ?diz que se chama? Russell. Ele constrói uma maquete, antes uma ?máquina sinóptica? da cidade de Buenos Aires, fruto de sua interpretação da cidade ?que era mais real do que a realidade, mais indefinido e mais puro?. Piglia, citando Pound, re-afirma que ?a leitura é uma arte da réplica?. A tentativa de compreender e o fascínio pelo que se consegue apreender do que se lê, torna a nós, leitores, seres replicantes.

Esta crônica tem a ver com o desejo de replicação, maternidade torta em busca de continuidade, enraizada na frase desajeitada do tenso e esperançoso vestibulando (leia-se aqui sua versão feminina também) e no imenso entusiasmo pelo texto denso de Piglia, a procriar sentidos em mim.

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