Introdução (1)
O presente estudo origina-se de decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça – em processo da relatoria da eminente ministra Nancy Andrighi, a qual desenvolve brilhante trabalho naquele Tribunal -, onde, segundo ela, seguindo uma linha adotada pelo Tribunal em outras decisões aparentemente semelhantes, se conheceu e deu provimento, por unanimidade, ao Recurso Especial 813.604-SC, cuja ementa se reproduz abaixo para melhor entendimento do tema:
Direito civil. Família. Investigação de paternidade. Pedido de alimentos. Assento de nascimento apenas com o nome da mãe biológica. Adoção efetivada unicamente por uma mulher. – O art. 27 do ECA qualifica o reconhecimento do estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, o qual pode ser exercitado por qualquer pessoa, em face dos pais ou seus herdeiros, sem restrição. – Nesses termos, não se deve impedir uma pessoa, qualquer que seja sua história de vida, tenha sido adotada ou não, de ter reconhecido o seu estado de filiação, porque subjaz a necessidade psicológica do conhecimento da verdade biológica, que deve ser respeitada. – Ao estabelecer o art. 41 do ECA que a adoção desliga o adotado de qualquer vínculo com pais ou parentes, por certo que não tem a pretensão de extinguir os laços naturais, de sangue, que perduram por expressa previsão legal no que concerne aos impedimentos matrimoniais, demonstrando, assim, que algum interesse jurídico subjaz. – O art. 27 do ECA não deve alcançar apenas aqueles que não foram adotados, porque jamais a interpretação da lei pode dar ensanchas a decisões discriminatórias, excludentes de direitos, de cunho marcadamente indisponível e de caráter personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição, como ocorre com o Direito ao reconhecimento do estado de filiação. – Sob tal perspectiva, tampouco poder-se-á tolher ou eliminar o direito do filho de pleitear alimentos do pai assim reconhecido na investigatória, não obstante a letra do art. 41 do ECA. – Na hipótese, ressalte-se que não há vínculo anterior, com o pai biológico, para ser rompido, simplesmente porque jamais existiu tal ligação, notadamente, em momento anterior à adoção, porquanto a investigante teve anotado no assento de nascimento apenas o nome da mãe biológica e foi, posteriormente, adotada unicamente por uma mulher, razão pela qual não constou do seu registro de nascimento o nome do pai. Recurso especial conhecido pela alínea ?a? e provido.
Trata-se de situação fática peculiar em que adolescente que teve seu assento de nascimento registrado tão somente em nome da mãe e foi posteriormente adotada apenas por uma mulher – viúva que trabalhava em abrigo na qual a adolescente estava -, aforou pedido de alimentos com incidente de investigação de paternidade em face daquele que julgava ser seu pai biológico. Em razão do resultado do exame de DNA, o qual apontou a probabilidade de 99,99% de chance de se tratar do pai biológico da adolescente, reconheceu o STJ no recurso supramencionado, o direito aos alimentos pleiteados pela adolescente.
A decisão abre discussão acerca da extensão da norma descrita nos artigos 27, 41, 45, 48 todos do Estatuto da Criança e do Adolescente e, ainda, artigo 226, § 4.º da Constituição Federal.
2. Modificações introduzidas pela Constituição Federal 1988.
A Constituição Federal de 1988 trouxe o conceito de entidade familiar, em substituição ao conceito puro e simples de família, assim, é que se pode considerar uma entidade familiar além da família tradicional, matrimonializada, também a família monoparental (artigo 226, § 4.º), formada pelos descendentes e apenas um dos pais ou, ainda, a família formada pela união estável de homem e mulher (artigo 226, § 3.º). Mas segundo parte da doutrina, as formas de entidade familiar reconhecidas pela Constituição Federal não são numerus clausus, mas apenas exemplificativos, podendo ser reconhecidas novas formas além das explicitadas no texto.
Na esteira da nova ordem constitucional, o Código Civil também modificou sua base principiologica, com a chamada despatrimonialização e repersonalização do direito civil, em face da constitucionalização deste, deixando de ter como elemento nuclear o patrimônio e passando a ter a pessoa humana como seu fundamento de proteção, ou seja, passou a valorizar a pessoa humana e protegê-la, diminuindo a proteção do patrimônio em relação a essa.
Tais mudanças na ordem constitucional e infraconstitucional visam à proteção da dignidade humana, a qual constitui valor fundamental da ordem jurídica para a ordem constitucional que pretenda se apresentar como Estado democrático de direito (SARLET, 2001, Pág. 37). É nesse sentido que a Constituição Federal tem por núcleo base a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III), ou seja, a pessoa humana como fim e fundamento máximo do Estado, levando à ilação de que o Estado deve ?trabalhar? em razão do indivíduo e não o indivíduo ?trabalhar? para o Estado.
É ela inerente a cada ser humano e, portanto, cada pessoa é um ser que merece respeito no seu íntimo, na sua moral, sendo dever do Estado assegurar a cada cidadão condições de alcançar uma vida digna, com respeito.
Para Alexandre de Moraes (2005, Pág 16), é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, onde o que se busca é o respeito por parte das demais pessoas, sendo considerada a pessoa como um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar.
O conceito de uma sociedade eudemonista, em que o fim e o bem supremo da vida humana é a felicidade, tem por escopo também a observância da dignidade humana, motivando várias transformações no direito de família, rompendo com um sistema rígido que vigia anteriormente, para buscar a felicidade através de formas mais simples.
Nessa linha é que, por exemplo, aos poucos o ordenamento jurídico acabou por reconhecer a união estável entre homem e mulher, o que antes não se concebia, pois que a família somente se constituía pelo matrimônio. Com isso, concebeu-se a um homem e uma mulher o direito de ser reconhecida a sua família sem o matrimônio, ofertando-lhes a felicidade da constituição de uma família, cumprindo assim o papel de observância da dignidade humana.
Sob a mesma ótica, ainda é possível afirmar que a adoção também faz parte da observância do princípio da dignidade humana e da busca da felicidade como fim e bem supremo da vida humana, tanto para o adotante como para o adotado, em razão da constituição de uma nova família, formada por pais e filhos.
Assim é que o ordenamento constitucional reconhece ao adotado os mesmo direitos dos filhos, anteriormente chamados de ?legítimos?, como corolário do reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana.
3. Adoção e a formação de uma família monoparental.
A adoção do menor rege-se pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem como núcleo a proteção do menor e sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Disso se pode chegar à conclusão de que as normas descritas no Estatuto devem ser interpretadas em favor do menor.
Na forma mencionada anteriormente, a Constituição Federal reconheceu a família monoparental (aquela formada por qualquer dos pais e seus descendentes) como entidade familiar e ao mesmo tempo, o ECA em seu artigo 41 reconheceu a condição de filho ao adotado.
Nessa linha de raciocínio, o ECA em momento algum vedou a adoção por apenas uma pessoa, ou melhor, no caput do artigo 42 reconheceu que qualquer pessoa pode adotar independente de seu estado civil, pois o que importa é o bem estar do menor. A norma busca a proteção do menor e esse bem estar tem maior probabilidade de se concretizar no seio de uma família, ainda que constituída tão somente por um pai ou uma mãe adotivos, do que na realidade de um abrigo.
A exegese que se retira até aqui, é que a família constituída apenas por uma mãe ou por um pai, através da adoção, também pode ser considerada uma família monoparental, nos termos perfeitamente reconhecidos pela Constituição Federal e ordenamento infraconstitucional, sendo, portanto, por eles protegida e prestigiada em patamar de igualdade com a família matrimonializada ou derivada de laços de sangue.
Levando tal conclusão para o caso concreto supramencionado, conjugando com a norma do artigo 43 do ECA, em que determina que a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotado, se pode afirmar que a adoção concretizada pela Senhora viúva, se constituía em real vantagem para o menor, formaliza uma família constitucionalmente reconhecida e atribui à adotante todos os deveres inerentes ao instituto jurídico, inclusive o de alimentos.
4. O rompimento do vínculo com os pais biológicos em decorrência da adoção.
O Estatuto da Criança e Adolescente (artigo 41) vai além, garante que a adoção rompe os vínculos dos pais e parentes com o menor, ou seja, o menor é desligado de suas origens biológicas para iniciar uma nova vida no seio de sua família.
No entanto, não obstante a formalização da adoção e a constituição da família monoparental para o menor, com a conseqüente formação do vínculo jurídico estabelecida entre a adotante e o menor, a obrigação decorrente de lhe prestar carinho, afetividade, educação e, principalmente, alimentos, a decisão citada entende que o fato de esse menor jamais haver tido em seu registro de nascimento a figura paterna, seja em relação ao pai biológico ou em relação a um pai adotivo, não haveria se estabelecido vínculo jurídico para ser rompido em razão da norma do artigo 41 do ECA.
Contudo, a decisão vai além, reconhecendo ainda o direito desse menor aos alimentos que não foram prestados pelo pai biológico, pois que, como não houve vínculo jurídico estabelecido entre eles não haveria o rompimento descrito pela norma.
Com o devido respeito à posição adotada na r. decisão ora em comento, que pese toda pessoa ter o direito de ver reconhecida a sua origem, no que se convencionou chamar de direito à origem genética, para esse patrimônio genético passar a trazer conseqüências no âmbito patrimonial, ou seja, trazer conseqüências decorrentes da filiação, como o dever de prestar alimentos, necessário se faz tal relação ser objeto de análise mais profunda.
Diego Saborido Gazziero é advogado, pós-graduado em Gestão de Direito Empresarial pela Faculdades Bom Jesus – FAE Business School.