Nós, brasileiros, sofremos desde a origem com alguns males que nos marcam a vida cotidiana até os dias de hoje. Ainda que possamos ser vistos de maneira extremamente positiva, como quisera Darci Ribeiro, numa espécie de ?nova romanidade, lavrada a sangue índio e a sangue negro?, somos, também, um produto mal acabado, mal elaborado que ainda precisa ser reinventado. Ver deste modo, embora seja entristecedor, ajuda-nos a buscar a excelência de nós mesmos, nossa forma aprimorada de subjetividade, a máxima potencialidade daquilo que um dia, na linha ancestral da antropofagia dos Tupinambás e dos Aimorés, desejava-se como um homem ideal, um ?aba-eté? (aba homem, eté, superlativo de bom) corajoso, pertinaz, ousado, cuja bravura, na lança e na zarabatana, arrebatava-lhe a sua própria essência.
Esse ideal de homem brasileiro da matriz tupi certamente está muito longe de acontecer, mas é preciso pensá-lo nas suas diversas formas de subjetivação contemporânea, seja no mundo prático, no mundo técnico, seja mesmo no mundo teórico, na academia, a fim de encontrar uma saída viável para a sua realização.
É necessário perceber que esse distanciamento dos ideais indígenas é um produto inevitável de uma história peculiar, que dentre tantos aspectos e tantas causas, de tanta morte colonial, traz sem dúvida a marca insegura e inconseqüente de nossa própria formação. Desde a origem titubeamos, vacilamos e hesitamos entre consecução e valores, entre influência e desejos, entre nacionalidade e estrangeirismos.
Somos um produto do acaso, para quem não admite a intencionalidade de Sagres, e por isso, somos o meio-termo, o ponto de passagem, o descanso de um novo caminho para o mundo oriental. ?Entre-posto?, tivemos desde o início a indecisão do nome, ora terra dos papagaios, ora da santa e vera cruz, ora dos brasis. Não bastasse nossa matrícula atrasada, fomos monopolisticamente arrendados a Fernando de Noronha, sendo um país e um povo, desde logo, de outro. Herdeiros das mãos incertas de donatários e burocratas portugueses, fugindo da falência do comércio com as índias, tivemos nossas cidades formadas por capitais de ?traficantes de escravos?, o que, infelizmente, rogou-nos desde o início uma pesada herança e um duro fardo que carregamos até hoje. Nossas subjetividades se formaram, assim, num processo de avanços e retrocessos, cambaleando numa híbrida insegurança constitutiva.
Tal é a força dessa formação instável e volúvel, que as personagens de nosso cotidiano refletem naturalmente um sem-número de possibilidades, o que seria normal do ponto de vista da pluralidade do ser humano, mas que é ao mesmo tempo trágico, se pensado na ambivalência de valores e de subjetividades que tomam espaço.
Melhor mundo não há para visualizar essa diversidade da geografia humana que o mundo da academia jurídica brasileira. Há nos seus atores e nas suas escolhas, ao invés de uma vastidão de éticas e de probidades no homo jusacademicus, à exceção de algumas raras pessoas, uma incontrolável subjetividade amorfa, que se mescla nas salas de aula, nos departamentos, nas bancas de concurso, nas diretorias, nas formações agremiais. Essa multiplicidade de juristas faz aparecer jusacademicu inconvictos, cuja insegurança, se fosse apenas dos seus dogmas intelectuais seria formidável, o grave problema é que, por vezes, reflete a inconstância do caráter.
Vêem-se, assim, passarinhando nos corredores dessa academia, ao menos alguns tipos subjetivos que se repetem, independentemente da instituição que se analise. Há aqueles de feição ?direitista?, aqueles de feição ?esquerdista?, e o pior, outros de roupagem ?alienada?.
Há o conservador convicto, que assume desde o início sua postura liberal e direita sobre o mundo. Deixa às claras sua natural tendência ao status quo, o que é digno, porém não pensa nas conseqüências de seu conservadorismo, na falta de distribuição dos fatores produtivos, da renda, da propriedade, do market share, etc., o que até mesmo o pensamento smithiano reconhecia como o lado nefasto do capitalismo industrial. Há também, de mesma matiz, o conservador perverso, esse, sem dúvida, uma forma deteriorada, porque defende o pensamento único, o modelo capitalista de produção porque lhe é necessário, seja para a manutenção de sua condição social, seja para a manutenção das relações de exploração. É aquele que não chegou a uma conclusão pensada sobre seu estado conservador, como o convicto, mas assumiu sua tendência por uma necessidade egoística, para fugir ao seu medo de abalar suas condições materiais e teóricas. Tipo ideal comum, em especial na academia jurídica. E, por fim, numa triste derivação, há o conservador oportunista, aquele que se mostra conservador, aquele transaciona com seus valores, aquele que, como um bom burguês, barganha na lei da oferta e da procura em busca do melhor preço, da sua melhor satisfação. É aquele que, se necessário, para angariar seus interesses, esquece sua incipiente sensibilidade, e se deixa corromper pelas oportunidades.
De outro lado, há gauchista nato, aquele que, na assimetria do conservador, nasceu marcado por um canhotismo intrínseco. É capaz de lutar até a morte, num ?prestismo tenentista?, na defesa de seus ideais. Acredita no coletivo, na comunidade, no social, o que é também muito digno, porém igualmente esquece a natureza competitiva e concorrencial do ser humano, não sabendo muito bem trabalhar com valores tão distintos. Tipo raríssimo de se encontrar, quase um modelo ideal de referência numa leitura weberiana, mas que serve de máscara para muitos. Há, porém, o gauchista perigoso, tipo que se tornou tradicional nas academias jurídicas brasileiras nos anos pós-desenvolvimentistas, e que persiste até hoje, em grande maioria. É aquele que, ameaçadoramente, torna-se ambidestro num lapso temporal extra-físico, capaz de demonstrar que Einstein na leitura centenária da relatividade estava certo, que a simultaneidade dos fatos depende exclusivamente do observador. Esse gauchista defende o estado quando necessário, defende a direita nos cargos públicos, quando importante, defende a direito quando em seu benefício. E, também, há uma forma ainda mais degradada e comum, que é o gauchista hipócrita. Aquele que na essência é um conservador. Tem os bolsos carregados, os olhos cifrados, o terno europeu, mas a fala melancólica e bela do comunitarismo. É aquele que tem uma admirável vocação retórica, um discurso de valorização do outro, mas que no fundo do peito fala mais mais alto seu amor ao bem próprio, e, que, portanto, na prática advocatícia, sobretudo, é um capitalista selvagem, capaz de assustar até mesmo, pela astúcia maliciosa, o mais intrépido dos naturalmente conservadores. Sua predisposição ao acúmulo e à poupança deixaria os keysenianos apavorados.
Obviamente, há o hibridismo dos alienados, que na fuga dos extremos, colocam-se justapostos ao bel prazer dos interesses. Entre eles, o alienado afásico, cuja alheação ao ambiente externo, aos outros, é capaz de saltar-lhe na essência, sendo passivamente acrítico. Mas há também o alienado egoísta, forma corriqueira, que acostumado a buscar seu próprio mundo, esquece-se propositadamente que existe o entorno, e como um bom conservador potencial, faz de seu egocentrismo uma fuga oportuna dos problemas alheios. Mas, infelizmente, como não poderia ser diferente, há a máxima deterioração subjetiva, o alienado necessário, que numa condução supostamente desapercebida na vida, torna-se a ferramenta necessária ao sistema, para que a mais-valia ocorra, para que o sistema engrene, para que o quorum de instalação de reuniões ocorra. Normalmente ocupa altos cargos na burocracia institucional.
Essa plurialidade subjetiva do homo jusacademicus, fruto daquela insegurança inicial do brasileiro de que se falava, precisa naturalmente ser repensada. De todos, infelizmente, nós temos um pouco, razão pela qual, conhecê-los e identificá-los é sempre uma forma nobre de tentar fugir de nossa própria formatação. O problema se encontra, numa dada segmentação de análise, na nítida diferença que existe entre o homem em si mesmo, e o homem que se realiza na academia jurídica. Somos bipolares, somos duais, e diferenciamos o nosso ambiente privado, nossa subjetividade no reino particular da nossa subjetividade no espaço público, na academia, aqui vista como a ?rua? de Roberto DaMatta.
Vista a jusacademia como entidade moral, e não apenas física, é fácil perceber que há muito tempo no Brasil, se não desde a origem, seus contornos são falhos e deteriorados. Há uma natural distinção entre a ?casa? e a ?academia?, como dois lugares distintos e espacializados. Somo um, no espaço íntimo e privativo, e outro, no espaço público e de todos. Por certo que o problema não pode, por um determinismo, ser localizado apenas nesse distanciamento, pois, antes de tudo, é preciso encontrar um homem moral, prudente, correto em si mesmo, mas isso, infelizmente, exige um outra reflexão de um fundo, em busca de um ?jurista curador de si?.
Esse afastamento do eixo da vida pública e o eixo da privacidade, da academia e da casa, é um grave problema no mundo juscademico. Evidentemente que o englobamento das duas esferas, numa espécie de átrio de visitas, causa danos ainda maiores, em especial quando o jusacademico faz da academia a ?província de sua casa?, tornando sua sala de aula, sua ?grande família?; seu departamento, suas brigas parentescas; suas aulas, suas amistosas catarses. O oposto também ocorre, quando ela faz da casa a ?província da impessoalidade acadêmica?, trazendo os expurgos de fora para sua moldura subjetiva.
Contudo, o problema maior, como bem gosta DeMatta, é que a sociedade brasileira é ?relacional?, é que esse distanciamento ou essa confusão de esferas se constrói de maneira desordenada, sem se perceber que as virtudes e as cidadanias, quando bem construídas pessoalmente, devem ser as mesmas em todos os lugares. Que não há uma Lebensführung (condução), no dizer weberiano, diferente na casa, na rua, na academia.
Na paráfrase de DaMatta, paremos de limpar ritualmente a casa e sujar a academia sem cerimônia, sem pejo, e, também, paremos de nos emporcalhar dessas formas deterioradas de subjetividade que existem no espaço jusacademico (embora em outros ambientes estudantis de igual modo ocorram). É preciso encontrar esse elo que se perdeu, essa conexão entre a ?casa? e a ?academia?, especialmente nos valores. É necessário ir em busca dessa adição indispensável, desse homem uno, desse homo jusacademicus único, que, embora conservador, gauchista ou alienado, os quais sempre existirão, ao menos exista em sua forma autêntica, verdadeira, sem aviltamentos, deteriorações, sem sujidades.
Guilherme Roman Borges é doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito na UFPR; professor de Economia no UnicenP.
