Só no ano de 2007 foram 409 mil interceptações telefônicas (?grampos telefônicos?) (Site Consultor Jurídico e O Estado de S.Paulo de 20/3/08, p. A13). Foram 1.200 interceptações por dia. Isso é muito ou pouco? Não temos parâmetros (internacionais) para verificar se essa (aparentemente exorbitante) quantidade de interceptações telefônicas está dentro ou não de um patamar médio. Para o procurador de Justiça José Carlos Cosenzo, ?é um descontrole absoluto? (O Estado de S.Paulo de 26/3/08, p. A8).

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Em princípio, num país que adota desde sua origem (desde 1500) a guerra civil étnica e/ou socioeconômica como bandeira de controle social, em que se registra a existência histórica de instituições punitivistas violentas, que fazem uso da tortura e da ameaça ferramentas costumeiras para a descoberta da autoria e da materialidade dos delitos, parece muito evidente que as interceptações telefônicas retratam sinal de civilização, muito distinto da barbárie que marca as investigações no Brasil (feitas pela polícia ou outras instituições, como as CPIs, por exemplo).

Em princípio (repita-se), o método investigativo das interceptações constitui um avanço, se comparado com os velhos métodos inquisitivos destrutivos e aniquiladores empregados neste país.

De qualquer maneira, também por meio da tecnologia de ponta é possível que os agentes do Estado (encarregados da repressão) pratiquem violência.

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A lei das interceptações (Lei 9.296/1996), embora conte com algumas falhas, trouxe um conjunto normativo relativamente suficiente para se equilibrar o interesse público da persecução penal com os direitos fundamentais das pessoas (privacidade, intimidade, honra etc.).

Se alguns abusos estão sendo constatados (com freqüência nos últimos tempos), com certeza, nesse caso, ao legislador não podem ser atribuídos (porque ele teve a preocupação de fazer uma série de exigências para a licitude da prova que possa ser colhida por meio da interceptação). Nossa atenção, destarte, obrigatoriamente deve ser voltada para a magistratura. Quando a lei é boa resta saber se o juiz que vai aplicá-la também é bom.

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De uma magistratura sensata o que se espera é uma posição de equilíbrio, prudência e temperança. Ocorre que, nas duas últimas décadas, setores vários dessa magistratura acabaram se envolvendo e se aliando (como ?bons? soldados) à luta (batalha) travada pelo poder público brasileiro para a manutenção da guerra civil étnica e/ou socioeconômica.

No que diz respeito à criminalidade do colarinho branco (das elites), finalmente a polícia federal começou a nela prestar atenção. E também aqui encontrou apoio de vários segmentos da magistratura que passaram a se comportar como ?bons? companheiros dessa empreitada (dessa ?cruzada? nacional). Numa ou noutra situação, perde o juiz (a magistratura) a posição de imparcialidade que lhe é (abstratamente) inerente.

Daí a responsabilidade maior residir nos tribunais. Sempre que houver algum abuso do juiz de primeira instância, a esperança que resta é a de que tudo será corrigido pelos tribunais. Ocorre que também no seio dos nossos tribunais vários magistrados se acham engajados (enfileirados, entrincheirados) com essa ?causa pública? (de manutenção e incremento da nossa guerra civil que dirige seus canhões em regra contra os excluídos e, de vez em quando, contra os ?privilegiados?).

Os abusos que vêm ocorrendo nas interceptações telefônicas, desse modo, tendem a aumentar, na medida em que incrementa pari passu o engajamento guerreiro de vários setores da magistratura que, dessa maneira, vai se distanciando da sua função precípua de respeitar e fazer respeitar os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos (ricos ou pobres) que se posicionam na linha de tiro da máquina estatal punitivista (repressivista).

A muitos faria bem a leitura do antológico voto do min. Celso de Mello no RE 466.343-SP, onde diz:

?Presente esse contexto, convém insistir na asserção de que o Poder Judiciário constitui o instrumento concretizador das liberdades civis, das franquias constitucionais e dos direitos fundamentais assegurados pelos tratado e convenções internacionais subscritos pelo Brasil. Essa alta missão, que foi confiada aos juízes e Tribunais, qualifica-se como uma das mais expressivas funções políticas do Poder Judiciário.

?O juiz, no plano de nossa organização institucional, representa o órgão estatal incumbido de concretizar as liberdades públicas proclamadas pela declaração constitucional de direitos e reconhecidas pelos atos e convenções internacionais fundados no direito das gentes. Assiste, desse modo, ao magistrado, o dever de atuar como instrumento da Constituição e garante de sua supremacia – na defesa incondicional e na garantia real das liberdades fundamentais da pessoa humana, conferindo, ainda, efetividade aos direitos fundados em tratados internacionais de que o Brasil seja parte. Essa é a missão socialmente mais importante e politicamente mais sensível que se impõe aos magistrados, em geral, e a esta Suprema Corte, em particular?.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais – www.lfg.com.br)