31 de março, nada a festejar

Um dia a mais e estaríamos em 1.º de abril, o consagrado Dia da Mentira. Só que desta vez a mentira aconteceu na véspera. O que se chamou de revolução, podemos, perfeitamente, analisar como golpe. Foi o rompimento da legalidade democrática. Jogou-se no lixo a Carta Magna de 1946.

Hoje não podemos comemorar nada. Temos sim que reunir nossos jovens e passar a eles, através de palestras, estudos e claros depoimentos, o significado e as conseqüências do movimento político-militar na história brasileira.

Um duro episódio na minha vida foi a tentativa de levante do coronel Tarcísio, a partir de Ponta Grossa. Foi nos idos de 1976, quando coronel Tarcísio era comandante do 13.º Batalhão de Infantaria Blindado e proferiu um duro discurso numa das palestras semanais do Lions Club. Eu tinha uma coluna diária em O Estado do Paraná e atendendo a um convite do Lions, noticiei na coluna que o coronel Tarcísio seria o palestrante da semana. Foram três ou quatro linhas no máximo. Eu nem assisti a palestra e nem participei da matéria que seria escrita na redação de O Estado, aqui em Curitiba. Quem apanhou o texto no Lions foi o Pedro Nunes Cottar, irmão do João Nunes Cottar (este chefe da sucursal na época) e que trabalhava conosco.

Só fui sentir o efeito da dureza do regime quando, num sábado, almoçava com alguns amigos na Churrascaria Expedicionário e recebi, na mesa do almoço, a intimação levada por um estafeta militar.

O envelope fechado me foi entregue com o seguinte recado: “O senhor está sendo convocado para comparecer agora, às 14 horas, no QG da Brigada. Se o senhor não comparecer nós viremos buscá-lo. Não se atrase”.

Sem maiores explicações fiquei estupefato com a enérgica convocação. Tratei de apressar o meu almoço e me dirigi ao QG. Quando cheguei na ante-sala da convocação deparei com vários conhecidos. Lembro que ali estavam diretores do Lions, o César Fernando Pilatti, secretário de Administração e Negócios Jurídicos da Prefeitura de Ponta Grossa, o prefeito Luís Carlos Zuk, o Pedro Nunes Cottar e até o Jéferson da Silva, na época um garoto de pouco mais de 15 anos que era nosso fotógrafo da sucursal e que fotografara o jantar do Lions.

Um por um foi sendo chamado para depor e ninguém estava autorizado a comentar nada quando saísse. Ficamos nos entreolhando o tempo todo como que perguntando: o que é que viemos fazer aqui?

Chegou a minha vez. Um militar designado pela 5.ª RM, de Curitiba, lá estava, com um datilógrafo ao lado, fazendo uma saraivada de perguntas, com as quais não tinha a menor intimidade.

Depois de quase duas horas e meia de interrogatório, onde fui obrigado a parar várias vezes o datilógrafo para corrigir os repasses do militar (sei lá que patente ele tinha. Eu sempre fui péssimo em reconhecer patentes militares) sobre o meu depoimento, ouvi-o esbravejar em alto e bom som:

“O senhor assina! Mas antes se lembre o que está escrito na Bandeira Nacional: Ordem e Progresso. O progresso é obrigação dos senhores. Agora, a ordem nós manteremos sob qualquer circunstância. Se tivermos que extraditar, punir, executar, não teremos o menor receio. O senhor assina e jamais comente o que se passou aqui nesta sala. O senhor pode arcar com todas as conseqüências!”

Na época, eu era assessor de imprensa da Prefeitura de Ponta Grossa e escrevia para O Estado. Eu era muito jovem, tinha pouquíssima experiência e a visão do Exército me inspirava receio, diante de tanta brutalidade que tomava conhecimento nos contatos com os quadros militares.

Ponta Grossa era uma cidade cercada de verde-oliva. Tinha o 13.º Batalhão de Infantaria Blindado, em Uvaranas, a 2.ª Divisão de Levantamento (um setor de engenharia que hoje está lotado em Brasília) e era sede também da 5.ª Brigada de Infantaria Blindada. Os coturnos e uniformes verde-oliva estavam espalhados por todos os cantos da cidade. Era uma cidade, eu diria, de um povo subserviente ao Exército, onde um simples cabo mandava muito mais que qualquer autoridade constituída. Bastava estar fardado.

O Exército punha e impunha, a ponto de montar uma das maiores forças futebolísticas do Paraná na época, a Ponta-grossense, um time de futebol, que se concentrava e treinava no quartel. Na imprensa era comum a vigia constante da soldadesca entrando e saindo, levando artigos, sugerindo matérias, chamando jornalistas para depor.

O que se ouvia por todos os cantos era a chamada “crise de autoridade”, “subversão da lei e da ordem”, “quebra da disciplina e da hierarquia” e “comunização” do País.

Dava-se a impressão de que tudo que não fosse verde-oliva era crime, principalmente o vermelho. Os nossos cabelos longos, nossas calças jeans desbotadas, nossas barbas compridas, costeletas suíças, tudo era forma de protesto. Estávamos à mercê dos que empunhavam a metralhadora e que não temiam em nos apontar, mesmo que estivéssemos de mãos limpas. Nós tínhamos, no olhar deles, a idéia poluída, o pensamento voltado para o comunismo. Éramos, na ânsia de uma juventude, subversores da ordem. Se falávamos éramos calados, se escrevíamos éramos censurados, se cantávamos éramos amaldiçoados por expressar o livre pensamento. Anos terríveis aqueles de cores cinzas, de autopunição freqüente.

Quando era estudante no Colégio Diocesano São Luís, em 64, um pouco antes do golpe, no começo do ano, sentei com meu pai e pedi a ele que me ajudasse e encapar meus cadernos. Tinha 11 anos de idade, o colégio era rigoroso e exigia que todas as capas obedecessem as cores de cada ano. Lembro que usávamos um plástico transparente azul. E meu pai, fã do Jango, sugeriu que eu colasse por debaixo da capa a imagem do presidente. Recortei uma revista Manchete da época e colei a figura do presidente no meu caderno de História.

Tão logo rompeu a famigerada revolução, meus colegas de colégio olhavam o meu caderno com a figura do Jango na capa e me chamavam de comunista. Sei que tive várias brigas por causa daquela capa. Até que fui convencido pelo meu pai de trocá-la para evitar novos dissabores.

Hoje sabemos que quem planejou e desencadeou o golpe contra a democracia foram as classes dominantes, apoiadas pelos setores médios e incentivadas por órgãos governamentais norte-americanos e facções radicais das Forças Armadas brasileiras.

O povo mesmo, formado por trabalhadores e assalariados, esteve ausente das passeatas que sugeriam a derrubada de Jango. E muito embora tivesse simpatia pelo governo, conforme pesquisas, na época, ele nada fez para evitar a sua derrubada. Desarmadas, desorganizadas e fragmentadas, as forças progressistas e de esquerda não ofereceram nenhuma resistência ao golpe que há muito tempo estava anunciado. Para não assistir uma “guerra civil” no País, Jango não quis ordenar uma ação repressiva contra os sediciosos que marchavam de Minas. Preferiu o exílio político.

E o que restou foi a cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os 20 anos da ditadura militar. Neste 31 de março, não há nada a comemorar. Ao contrário. Temos sempre que relembrar: Ditadura nunca mais!

Osni Gomes é editor em O Estado

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