Se é possível concordar com alguns setores da sociedade sul-americana, quando externam preocupações com a fragilidade do Mercosul, por outro lado, é preciso reconhecer, peremptoriamente, e nisso contrariando ceticismos e adversidades localizadas(1), que o combalido bloco assunceno definitivamente ?não está morto? – conquanto agora tendo ainda mais ameaçada a meta inicial de transformar-se em ?mercado comum?.
Passados dezessete anos de seu lançamento(2), o Mercosul, tanto como realidade regional quanto como idéia estratégica, mantém sua força, sua vigência e uma boa base de sustentação. Apresenta, porém, notórias deficiências, seja como processo e respectiva estrutura jurídico-funcional, seja como imagem, suscitando dúvidas em termos de poder de barganha, atração de investidores para todos os sócios e de identidade cultural. Inegável, por outro lado, o saldo acumulado no campo da consolidação democrática e do combate às tentações totalitárias, assim como no aprendizado da diplomacia da integração. Irrefutável, também, a capacidade do bloco em incrementar o comércio sub-regional, de perceber a realidade e as mudanças do contexto internacional, de projetar-se como nunca no cenário latino-americano -de que é reflexo a recente adesão da Venezuela ao grupo sub-regional!
Razões que, por si só, já justificam a existência do Mercosul e o credenciam a melhores tempos, o que pode ser detectado, inclusive, com a política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para a América Latina, a convergência política encetada pelos novos presidentes dos países vizinhos (ex., Tabaré Vasquez, no Uruguai; Cristina Kirchner, na Argentina), a ajuda econômica internacional – a conta-gotas, é verdade! – repassada à Argentina, a opção pela latinoamericanidade encenada publicamente por novos mandatários andinos (como o Presidente Hugo Chavez) e os sinais de reafirmação de fé dos Estados fundadores nos postulados do tratado-matriz, dissipando qualquer versão mais derrotista a respeito e confirmando a crença no futuro do modelo.
Além disso, há que se registrar que na sua configuração institucional definitiva, o Mercosul, para além do período de convergência da tarifa externa comum (TEC), terá de decidir entre os caminhos – diferentes quanto a resultado final e resposta aos imperativos da globalização que se espraia – da cooperação ou da integração e, conseqüentemente, entre intergovernabilidade e supranacionalidade.
O sucesso ou esvaziamento do modelo passa por esses conceitos, leitura que mais se aclara com a percepção de que as relações entre Brasil e Argentina ainda não atravessam uma boa fase(3), os desentendimentos recentes entre Argentina e Uruguai(4) encontram-se aguçados e desde 2006 o Paraguai e o Uruguai elevaram o tom de suas queixas sobre as assimetrias econômicas do bloco em detrimento dos chamados ?sócios menores?(5). Situações tais que evidenciam a urgente necessidade dos Estados Partes redefinirem e harmonizarem seus projetos nacionais, desenvolverem mecanismos e regras padronizadoras do comportamento dos atores governamentais e privados(6), bem como de agregarem à atual estrutura intergovernamental do Mercosul alguns ingredientes e princípios análogos aos que ajudaram a fazer a diferença no contexto integrado europeu – dentre eles, a instalação de um tribunal fixo e independente dos governos, enquanto órgão jurisdicional competente para o controle da legalidade dos atos e da interpretação das normas regionais, visando a assegurar a coerência do sistema jurídico comum (ou comunitário) e dar segurança social ao bloco mercosulista.
Afinal, se o mercado comum for de fato a opção qualitativa do Mercosul, torna-se indispensável à figura do tribunal supranacional para estruturá-lo juridicamente. Espera-se que sobre a realidade circunstancial intrabloco, após o desaceleramento do processo mercosulista nos últimos tempos, soprem ventos mais lúcidos, capazes de estreitar os laços políticos interestatais, solidificar a solidariedade e a participação internas, além de inspirar medidas mais avançadas com relação ao quadro institucional desse consórcio assunceno – em que não devem faltar o respeito ao direito institucionalizado entre as Partes e a ampla garantia dos direitos humanos, sem o que a integração não atenderá ao seu verdadeiro sentido!
Notas
(1) Além de equívocos estratégicos aparentemente maniqueistas, constatados no transcorrer desse curto e denso percurso de dezessete anos de existência do modelo integracionista sub-regional, e sintetizados, de um lado, pela concepção lírica dos que muitas vezes tentaram vender a idéia da integração como o elixir do progresso ao alcance das mãos, e de outro, pelo discurso pessimista das eternas ?Cassandras do Mercosul?, cabe o registro de que muitas vezes, igualmente, perdeu-se de vista o verdadeiro sentido dos propósitos últimos do Tratado de Assunção, para se enxergar o Mercosul exclusivamente como bandeira comercial de curto prazo e se tentar fazer dele apenas uma marca comercial vencedora, o que em parte já teria sido alcançado se nos limitarmos a medi-lo em termos de balanças de pagamento e indicadores econômicos comparados.
(2) O Mercosul foi criado pelo Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991, tendo como membros-fundadores a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai. Hoje, também integram o bloco, enquanto membros-associados, o Chile e a Bolívia (desde 1996) e o Peru (desde 2003). Em 2006, a Venezuela firmou acordo com a cúpula mercosulista, obtendo o seu ingresso como membro-pleno, mas para o que ainda não obteve o referendo do Congresso Brasileiro.
(3) Para o especialista Félix Peña, um dos grandes ideólogos do Mercosul, hoje diretor da Fundação BankBoston da Argentina, o esfriamento nas relações entre estes dois países deve-se a dois fatos: ?Por um lado, a sensação de que, para o Brasil e para os empresários brasileiros, o mercado argentino já não é tão importante em termos relativos, se comparado, por exemplo, com o mercado global. Em segundo lugar, tenho a impressão de que essa percepção dos brasileiros baseia-se no fascínio decorrente da grande dinâmica provocada pelas mudanças e pelas enormes oportunidades de negócios que se abrem hoje em outros horizontes, particularmente na Ásia. Os argentinos, por sua vez, estariam mais inclinados a jogar em um campo de proporções menos grandiosas.? (In: http://www.wharton.universia.net/index.cfm? fa=viewArticle&id=979& language=portuguese&specialId=; publicado em 15/6/2005; acessado em 29/2/2008)
(4) A relação é tensa porque a Argentina se opõe à construção de duas fábricas de processamento de celulose – uma finlandesa e uma espanhola – na fronteira do país com o Uruguai, por conta dos riscos ambientais.
(5) As assimetrias de mercados existentes no bloco são grandes, o que vem mantendo e aumentando os atritos entre os parceiros. Além do problema de quebra de regras unilaterais entre Argentina e Brasil, o e o reivindicam concessões econômicas afim de compensar as assimetrias de mercado que sofrem. Em 2006, o intercâmbio comercial com esses dois países foi quase 20 vezes menor que as trocas com a , outro integrante do bloco. Apesar disso tudo, o intercâmbio comercial geral dentro do Mercosul tem aumentado muito, batendo um recorde histórico em 2006. Este intercâmbio tem sido favorável ao Brasil. O país tem comercial com todos os demais países membros.
(6) Os riscos de um desentendimento maior entre Brasil e Argentina não são convenientes, em especial, neste momento em que os Estados Unidos e a Europa, por razões diferentes, apresentam novas versões para as negociações da Rodada Doha. A proposta do corte de subsídios agrícolas nos EUA entre US$ 13 bilhões e US$ 16 bilhões, ao lado da redução de 66% a 73% nas tarifas protecionistas dos produtos agrícolas europeus, devem provocar um crescimento das pressões para que o corte das tarifas industriais nos emergentes (aí incluídos Brasil e Argentina) caiam nos padrões médios dos atuais 29% para cerca de 13%. Esse fato terá enormes repercussões nos parques industriais dos dois países.
Porém, o governo do Palácio Rosado sabe que a indústria argentina está menos preparada para essa inevitável situação do que a congênere brasileira. Os conflitos, pequenos ou grandes que sejam, no comércio bilateral com o Brasil, têm esse pano de fundo. Os diplomatas e os empresários brasileiros não podem perder esse cenário de vista quando negociam com o país vizinho.
Wagner Rocha D?Angelis é jurista especializado em Direito Internacional e Direito da Integração; mestre e doutorando em Direito; professor universitário (UTP / Unisep / Dom Bosco); Observador Jurídico da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Corte de San Jose); presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (Ajial).