As visões que os médicos não explicam começam assim que a ponta da agulha encosta delicadamente o sulco do vinil e a voz de Alberta Hunter toma a casa inteira. Ela vem elegante em seus 88 anos, caminhando para um canto do palco escuro, ao lado do piano, sem que ninguém a perceba. Quando os músicos estão prontos, o foco de luz a coloca em cena e sua imagem estremece a plateia do Bar 150, do Hotel Maksoud Plaza, em São Paulo. Miss Hunter é daquelas mulheres que fazem sua plateia rir e chorar com a mesma abnegação. Ela vai morrer no ano seguinte, em 17/10/1984, mas, naquela noite, se tornará eterna e assídua frequentadora das memórias de Zuza Homem de Mello.

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Charles Mingus chega na calada da noite. Seria apenas o contrabaixista gigante do jazz a pensar seu instrumento com a liberdade de um trompetista se não saísse do toca-discos de Zuza também de outras formas. Já havia sido uma surpresa que ele, o impetuoso Mingus, aceitasse conversar com um jornalista jovem e branco, a combinação perfeita para fazê-lo trancar a alma. Mas Mingus está ali, em uma tarde de maio de 1958, diante dos olhos incrédulos de um garoto de 25 anos. Eles vão falar de Duke Ellington, Art Blakey, Chico Hamilton e Charlie Parker como se tivessem a mesma estatura. “O que acha do desenvolvimento do contrabaixo no jazz?”, pergunta o jovem Zuza. “Os músicos de instrumentos de sopro, ou seja, os que são considerados genericamente solistas, acham que o contrabaixo deve ser apenas um suporte rítmico para os solistas… O público deseja ouvir o contrabaixo apenas como um instrumento sem um conceito de criação.” Vinte e um anos depois da conversa, Mingus seria abatido por um tipo raro de esclerose, perderia o movimento das pernas e morreria em janeiro de 1979, não sem antes se tornar outro personagem das visões de Zuza.

José Eduardo Homem de Mello ouve música com os olhos, sente notas com o paladar. Quando esteve diante de Alberta Hunter, em 1983, já tinha pelo menos 50 anos de canções soando em sua cabeça. Hoje, aos 81, resolve generosamente compartilhar a história que testemunhou, organizando-a em um livro. Música com Z abrange a produção do jornalista, pesquisador, técnico de som, produtor, crítico, ex-contrabaixista e apresentador de rádio em 140 textos. São reportagens, artigos, entrevistas e até textos feitos sob encomendas de gravadoras para releases de artistas que lançavam discos. Às 19h30 de hoje, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, Zuza bate um papo com o jornalista Alexandre Machado para marcar o lançamento. As senhas começam a ser distribuídas uma hora antes.

A lista de entrevistados, por si, justificaria a obra. Jorge Veiga e Moreira da Silva; Itamar Assumpção; Milton Nascimento; Chico Buarque; Moacir Santos; Morris Albert; Toots Thielemans; Joe Pass; Dizzy Gillespie; Maria Bethânia; Sonny Rollins. Música brasileira e jazz no mesmo volume. Num de seus textos, publicado pela Revista da Folha em 16/11/2003, Zuza se permite migrar para a ficção, por mais real que possa soar, e escreve sobre uma ligação telefônica fictícia de Elis Regina para o violonista Guinga. “Depois de amanhã vou fazer um concerto do cacete no Lincoln Center com a Banda Mantiqueira, do Proveta e aquelas feras de São Paulo. Vamos quebrar tudo, deixar esses gringos falando sozinhos, quero só ver a cara do (Wynton) Marsalis. Parece que ele quer me convidar para cantar com a banda. E eu vou? Bicho, os caras aqui estão doidos, não tem mais cantora neste país, precisamos exportar as nossa. Vou te pedir mais um favor, me arranja uma música que eu quero mandar para a Maria Rita. O repertório dela tá mais para Grêmio que para Santos. Ainda vou fazer um dueto com ela. Já imaginou mãe e filha cantando? As duas? Vou entortar ela também, não tem conversa, sou a maior.”

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Assim como esteve em Nova York ao lado de Charles Mingus experimentando o jazz em seus anos de ouro, acompanhou no Brasil a Era dos Festivais, trabalhou com Elis e Jair Rodrigues no programa O Fino da Bossa como técnico de som da TV Record e deixou-se levar pela profissão de repórter, escrevendo para os grandes jornais do País. Extraiu a primeira entrevista de Itamar Assumpção, estudou Sinatra, esteve entre os jornalistas para a última entrevista que Elis daria para a TV e perfilou Miles Davis. Quando não está diante de seu toca-discos revisitando o passado, vive pela noite de São Paulo ao lado da mulher Ercília entre um festival de jazz e uma aula de música brasileira sendo ele, sempre, o professor.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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