A cada esquina que se vira em New Orleans, lá está um pequeno Wynton Marsalis. Eles são muitos, quase todos negros, e tocam trompetes sozinhos ou em bandas escolares sonhando com alguns centímetros de palco das milhares de casas da Bleecker, da Bourbon ou de qualquer café da valorosa French Quarter disposto a lhes dar uma chance. Antes de partir e se tornar diretor de um dos mais respeitáveis projetos do jazz no mundo, Marsalis, assim como Louis Armstrong fez décadas antes, abriu um caminho por aquelas ruas dando a primeira lição aos garotos da cidade: ouvir as ruas para entender o mundo.
Aos 57 anos, filho do pianista e professor Ellis Marsalis e integrante de uma família sem ovelhas desgarradas – os irmãos Branford, o mais velho, saxofonista; Delfeayo, trombonista; e Jason, o mais novo, baterista -, Wynton é músico por coração e arqueólogo por sentimento. O que ele quer está nas camadas geológicas mais profundas que podem explicar tudo o que veio depois até a era do hip hop. Acusado por vezes de excessivamente tradicionalista, tem tido posturas das mais modernas ao sair pelo mundo disposto a ensinar o que sabe e posicionamentos democráticos com relação à linguagem do jazz contemporâneo, como mostra na conversa com o jornal O Estado de S. Paulo, por telefone.
Marsalis estará no Brasil entre 19 e 30 de junho com os 15 músicos de sua Jazz at Lincoln Center Orchestra, sobretudo para compartilhar o que sabe. Sua mais longa temporada por aqui, agora a convite do Sesc, será concluída depois de 12 dias com onze concertos (dois deles comentados), dois ensaios abertos, duas palestras, um encontro com o próprio Marsalis e quatro workshops para músicos dispostos a irem nas bases do jazz, uma programação dispersa por oito unidades do Sesc da Grande São Paulo. A forma de trabalho bem distante das dependências do monumental Lincoln Center, em Manhattan, foi adotada há alguns anos, com muitos países já visitados, e não deixa de refletir o pensamento do garoto bicho solto que aprendeu tanto com as ruas de New Orleans. “Missão? De certa forma, acho que sim”, diz ele, fazendo um breve silêncio depois do ponto de interrogação. Afinal, o que o faz deixar Nova York e sair pelo mundo para temporadas tão longas fora de casa? “Eu penso que todos os artistas, de certa forma, são abençoados com esse dom. Eles podem enriquecer as pessoas quando levam a cultura que têm. Isso é um dom, é uma bênção. Eu e os músicos da minha orquestra adoramos fazer isso.”
Serão muitas horas diante de brasileiros dispostos a entender seus segredos, sua dinâmica, seus ataques ao trompete, o uso tão especial da surdina e todo o seu conceito orquestral, sem falar no conhecimento que cada um dos excelentes instrumentistas a seu lado devem passar. Afinal, muitos estão com ele há 30 anos, desde a origem do projeto. Mas, se tivesse apenas uma aula a dar, ou uma frase a dizer, o que diria Wynton Marsalis a quem o ouve de olhos arregalados? “Eu diria que o mais importante é saber o significado simbólico da herança de nossos antepassados”, diz sua alma de arqueólogo. “E a importância em aprendermos a dividir essa herança e a expressá-la por meio da música.”
O Sesc faz com sua vinda um gol de Copa em um momento de discussão sobre a estrutura de financiamento e sua importância como propagador de cultura paralelo ao poder do Estado. Danilo Santos Miranda, diretor regional, conta que trazer Wynton e sua orquestra só foi possível depois de muita negociação com as partes. “A vinda dele é resultado de uma longa, imensa discussão sobre as condições e sobre como poderíamos mesmo fazer isso com um conjunto de excelência como este.” Uma estimativa aponta que cerca de 13 mil pessoas devem ser sensibilizadas com as ações, entre ouvintes e participantes ativos de ações educativas. Uma parte da programação será gratuita e, quando pagos, os concertos terão ingresso no valor máximo de R$ 40 (inteira). As vendas serão abertas no próximo dia 11 de junho no portal sescsp.org.br.
Não é a primeira vez que Marsalis tira o jazz dos castelos do Lincoln Center. Em 2015, o último ano em que esteve no Brasil, acabou ao lado da Spok Frevo Orquestra pelas ruas de Olinda tocando uma outra tradição de sopros urbanos, o frevo. “O aspecto físico e as danças se parecem muito com New Orleans.”
Haveria algo que os músicos brasileiros fazem e que ele não consegue fazer? Marsalis sorri. “Há, muitas coisas. Muitas coisas mesmo”, enfatiza. “A maneira de sentir de vocês é diferente.” Ele se lembra do dia em que o violonista brasileiro Romero Lubambo lhe ensinava um tema e, enquanto tentava colocar aquilo no tempo, era desaprovado. “Ele dizia, ‘está errado, está errado’.” E, então, o que o homem que vem ensinar gostaria de aprender com os brasileiros? “A escrever temas eternos em ritmos como bossa nova, frevo, choro, samba.”
Jazz moderno
Sobre a linguagem do jazz de hoje, Marsalis já foi criticado por ser contra misturas que desvirtuem a essência do gênero. Mas quando fala, não parece mais defender tradições em detrimento de experimentos. A questão chega a ele aqui com uma comparação: Ron Carter, o baixista vivo mais importante do jazz que se apresentou há um mês no Bourbon Street de São Paulo, versus a maioria dos instrumentistas que tocaram há uma semana no bem-sucedido Rio Montreux Jazz Festival, no Rio (o também baixista Stanley Clarke e os violonistas Al Di Meola e Yamandú Costa entre eles).
Enquanto Carter e seus músicos fizeram tudo com uma sensibilidade tremenda, um volume quase acústico mesmo da guitarra elétrica de Russel Malone, improvisos criteriosos, frases melódicas estruturadas nota a nota e um religioso respeito ao silêncio, os instrumentistas das plateias maiores do Rio Montreux partiram para apresentações de arroubos velozes, volumes de rock and roll e frases tão rápidas que deixavam notas mal acabadas pelo caminho.
O espetáculo do jazz estaria se tornando a própria velocidade? A pureza de Ron Carter não teria mais espaço no ego dos instrumentistas? A raiva dos tempos modernos estaria sendo refletida em uma musicalidade mais agressiva? O que, afinal, aplaudíamos? A beleza das melodias e seus improvisos ou a chegada de um velocista à linha final? Wynton Marsalis não morde nenhuma isca e prefere não escolher nenhuma das alternativas. “É difícil saber o que estamos aplaudindo porque nós, plateia, somos muitos e cada um pode estar aplaudindo por um motivo. Assim como nós, músicos, tocamos por razões diferentes. Alguns sentem raiva e explodem no instrumento, outros se emocionam e passam sutileza. A música é assim, a arte do invisível.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.