A tradição já soma décadas – às segundas-feiras, por volta das 20h45, o pequeno bar do hotel Carlyle, em Nova York, fica apinhado de pessoas bem vestidas para ver a apresentação da Eddy Davis New Orleans Jazz Band. Na verdade, a grande atração é o clarinetista, um senhor tipicamente nova-iorquino chamado Woody Allen. Notório fã de jazz e blues, o cineasta concilia como pode o cinema com a música, escolhendo a segunda-feira como dia dedicado às nobres melodias.
O lugar vive uma imensa expectativa até sua entrada. Impossível não reconhecê-lo: magro, cabelo ralo e desgrenhado, camisa listrada, cinto, calça e, claro, o par de óculos que se tornou sua marca. Ele chega tímido, buscando se esconder entre os outros seis músicos. Senta-se à frente, ao lado de Eddy Davis e seu banjo. A música é uma paixão, mas, diante de um público que disputou há semanas a reserva de uma mesa (na primeira fila, sai por US$ 200 por cabeça), casais bem alinhados que enchem a sala com perfume de madeiras nobres, Woody não se sente à vontade.
Enquanto não toca, mantém a cabeça baixa, olhos fechados. A atenção se concentra na perna esquerda, que marca o ritmo. Mesmo quando chega sua vez, ele não encara a plateia e assopra a clarineta como se estivesse com os amigos, na casa de um deles. A penumbra do bar é iluminada por inúmeros celulares, que fotografam e filmam o momento. Todos não querem perder um detalhe, a ponto de nem se importarem com a horrenda decoração do local – paredes com desenhos de traço nada inspirado, representando figuras mitológicas.
Woody Allen começou sua carreira de músico solo em 1973, quando começou a se apresentar no Michael’s Pub. Logo ele conheceu Eddy Davis e, juntos, formaram uma banda, que passou a ocupar continuamente o bar do hotel Carlyle nos anos 1990. O espaço é perfeito – construído nos anos 1930, o Carlyle resiste ao tempo, preservando serviços que fazem vibrar os saudosistas, como elevadores com ascensoristas, chave de metal e jornal deixado pendurado na porta, pela manhã. Assim, o som que sai do bar e ecoa pelas suas paredes compõe uma adequada trilha sonora.
Qualquer fã dos filmes de Woody Allen sabe de sua predileção por canções de New Orleans entre os anos 1920 e 50 e é justamente essa trilha que o cineasta clarinetista apresenta durante quase duas horas. Músicas que integram filmes como Stardust Memories (como Body and Soul e Stardust) e Annie Hall (a linda Seems Like Old Times, além da incomparável It Had to Be You).
Aliás, o fã de verdade também sabe que, quando o nome de Woody Allen foi anunciado como o melhor diretor na entrega do Oscar de 1978, ele não estava na plateia, em Los Angeles. Afinal, naquela época, a premiação acontecia às segundas-feiras e Woody preferiu não faltar ao encontro com amigos do jazz.
Woody é um músico esforçado. Nota-se seu conhecimento das notas, mas nem sempre elas aparecem. O sopro, muitas vezes, não passa de ar. Outras vezes, especialmente nos agudos, o som arranha o ouvido, como taquara rachada, mas, como ali ninguém se parece com o perfeccionista professor do filme Whiplash (que, se tivesse Woody como aluno, talvez lhe desse um tiro), os aplausos são efusivos.
Se Woody permanece quase o tempo todo de olhos fechados, os outros músicos se divertem: fazem piadas, improvisam, cantam sem medo de desafinar. Eddy Davis comanda a festa e, quando um senhor da plateia pede uma música, um blues triste, ele consulta Woody com um olhar. O cineasta respondeu apenas com um lacônico “Ok”. Ao final, enquanto a plateia urra, ele desatarraxa sua clarineta, a coloca cuidadosamente numa mala preta, veste um pulôver e sai distribuindo a todos o “thank you” mais envergonhado que se tem notícia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.