Bíblia do show biz nos EUA, Variety edita uma revista diária que circula no 58.º festival de Cannes. Variety fez uma pesquisa – a maioria dos filmes que venceram a Palma de Ouro nos últimos anos foi exibida no décimo dia da competição. Hoje, veio Wim Wenders, com Don’t Come Knocking. Será uma pena se a tradição não for cumprida. Wenders andava fazendo filmes tão decepcionantes. Até nos fazia esquecer que sabe filmar. Don’t Come Knocking mostra que ele ainda sabe filmar muito bem.
É gratificante falar de forma elogiosa de um autor que parecia liquidado. O Sr. Cinema, como era chamado nos anos 80, recuperou a forma. Wenders já havia dado sinais de vida, no ano passado, com Land of Plenty. Sua ressurreição agora está completa. Alguém (o amigo do amigo do amigo de não se sabe quem) já viu o presidente do júri, Emir Kusturica, cumprimentar Jim Jarmusch dizendo que havia gostado muito do filme dele, Broken Flowers. O júri pode (e deve) atribuir prêmio importante a Jarmusch, cujo filme é ótimo. Mas a palma poderia voltar a Wim Wenders. Há 21 anos, ele recebeu a primeira Palma de Ouro, por Paris, Texas. O novo filme tem tudo a ver, a começar pela parceria Wenders-Sam Shepard.
Na abertura de Don’t Come Knocking, Shepard faz um astro decadente de westerns que abandona o set de filmagem. Parte cavalgando, como os mocinhos de antigamente. Reata laços familiares, reencontrando a mãe depois de 30 anos. Ela é interpretada por Eva Marie Saint. A mãe lhe diz que ele tem filho. Howard, é o nome do personagem, vive à deriva. Retorna a Butte, em Montana, em busca do filho que teve com a garçonete Jessica Lange. Paralelamente, correm outrras histórias – a da garota que carrega as cinzas da mãe; a do agente de seguros que persegue o fugitivo Shepard.
Wenders refaz toda uma mitologia do western: o homem sem rumo, a dificuldade de criar raízes, a família como algo penoso (e elo inquebrantável). Howard, que Jessica chama de coward (covarde), é a nova versão do Travis de Paris, Texas. É Ulisses em busca de Telêmaco e encontrando Náusicaa. O western volta e meia é comparado à Odisséia. John Ford é o Homero das pradarias.
Atraído por paisagens míticas, Wenders queria filmar em Monument Valley, cenário dos maiores westerns de Ford. Mas ele diz que Monument Valley perdeu a alma, pervertida pela propaganda. O Oeste mítico que buscava ele encontrou em Montana e em Butte. O filme é um tanto desequilibrado. Vale lembrar Rossellini e Truffaut, que acreditavam no cinema imperfeito. Wenders contou que havia tentado fazer com que Shepard interpretasse Hammett. Ele não quis.
Também não quis ser Travis, em Paris, Texas, e Harry Dean Stanton fez o belo trabalho que todo mundo sabe. Agora, o próprio Shepard disse ao diretor que poderia interpretar Howard. Melhor – que gostaria de interpretar Howard. Wenders e Shepard levaram três anos para levantar o projeto. "É mais do que um roteiro; é um pedaço de nossas vidas", diz o ator e roteirista. Sua mulher, Jessica Lange, é magnífica. É um filme sobre a covardia dos homens e a força das mulheres. "Não é sempre assim?", Shepard pergunta e Wenders concorda.
Se Wenders surpreendeu (o filme será lançado no Brasil pela Golden), Amos Gitai decepcionou com Free Zone, tentativa de interpretação simplificada (e até equivocada, talvez) do conflito entre palestinos e israelenses. Há uma briga por dinheiro em Free Zone. Não é por dinheiro que o Oriente Médio vive explodindo. A origem da guerra é outra. Gitai sabe. Mostrou-a em Kedma.
O festival segue seu curso. Ontem (18) à noite, Pelé e o ministro da Cultura, Gilberto Gil, foram aplaudidíssimos na subida da escadaria do palais, ao som de Aquele Abraço. Enquanto na tela armada na praia rolava o documentário Pelé Eterno (que hoje ganhou o prêmio italiano Cidade de Roma, dedicado aos melhores latinos), no calçadão apresentava-se um grupo de capoeira. Você liga a TV e Marcelo Gomes está dando entrevista sobre "Cinema, Aspirinas e Urubus". Se não é ele, é Sérgio Machado, diretor do outro filme brasileiro na mostra Un Certain Regard, "Cidade Baixa". O Brasil faz bela figura em Cannes. (Por Luiz Carlos Merten, enviado especial)